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O ‘legado’ de Hitler ainda é uma sombra para o mundo?

hitlerO antigo prédio que ocupa o número 15 da rua Salzburger Vorstadt, na cidade austríaca de Braunau am Inn, ainda aguarda seu destino como uma vítima de uma espécie de “maldição” – foi ali que Hitler nasceu, há 127 anos.

Agora, o governo austríaco afirma que destruirá ou alterará por completo a construção do século 17 para impedir que neonazistas a transformem em um santuário. Mas talvez seja tarde demais.

Hitler não pode ser esquecido, mas o que importa é como ele é lembrado.

Há uma placa do lado de fora do prédio com a frase: “Pela paz, democracia e liberdade. Milhões de mortos nos lembram: fascismo nunca mais”.

Deveríamos nos esquivar da história de Hitler ou notar que esse monstro ainda nos assombra? E se for uma luz, em vez de uma sombra, que tem o potencial de lançar um novo olhar sobre nosso tempo?

É útil ou despropositado que sua memória seja usada para informar opiniões a respeito da ascensão da extrema direita, o crescimento do nacionalismo russo, de figuras como o político holandês Geert Wilders e do sucesso de Donald Trump?

Pode ser preocupante ignorar a história em vez de ouvir o que ela tem a nos dizer. E a enorme fascinação e a tremenda repulsa que Hitler ainda gera em nós escondem valiosas lições.

“Nazista!” tornou-se uma espécie de insulto barato, destituído de valor e significado como qualquer outro palavrão. Mas isso não pode nos impedir de ver além.

Este ícone do mal foi um político de muito sucesso. Seus feitos foram tão monstruosos que outros assassinatos em massa cometidos por políticos ficaram ofuscados.

É verdade que o todo debate se transformou em uma espécie de máquina de comparações com os crimes de Mao Tse ou Stalin, questionando porque o líder do Socialismo Nacional alemão evoca mais horror e pavor.

Autoridades austríacas parecem se preocupar com o mais óbvio e menos importante legado de Hitler: seu fã-clube.

Há vários pequenos grupos na Europa – da Suécia ao Reino Unido – que reverenciam Hitler, mas, em geral, há pouco apetite no continente para uniformes e homens em marcha ou entusiasmo pela guerra.

Os ecos são mais sutis do que isso. Há uma evidente e crescente atração por soluções não tradicionais, particularmente aquelas propostas pela direita nacionalista e anti-imigração, muitas com um forte senso de identidade étnica e cultural.

A maioria dos países europeus está observando um crescimento rápido desses partidos – diferentes entre si, mas unidos em seu populismo.

Hitler não foi o primeiro populista, mas ele foi um dos grandes expoentes deste estilo político.

Na sua essência, o populismo ataca os grupos “de fora” – “os outros” – por meio de uma crítica às elites, que são acusadas de mimar ou proteger esses grupos e trair “o povo”.

Hitler dizia ter uma visão quase mística sobre o desejo do povo alemão, ou German Volk, e os líderes dos movimentos atuais de extrema direita fazem interpretações pessoais muito similares a essa com relação aos desejos de seus eleitores.

A extensa sombra de Hitler também tem alguns ecos verbais, até mesmo não intencionais.

É por isso que o discurso sobre a “lista de inimigos estrangeiros” feito na conferência do Partido Conservador britânico nos faz pensar sobre as Leis de Nuremberg, um marco da política antissemita de Hitler.

É também por isso que, quando a premiê britânica Theresa May diz que “se você acredita ser um cidadão do mundo, você é um cidadão de lugar nenhum”, alguns lembram dos antipatriotas “cosmopolitas sem raízes” ridicularizados por Hitler (e Stalin) como a antítese do nacionalismo de puro sangue.

Também transforma em um pesadelo simbólico a proposta feita pelos conservadores do Reino Unido de checar os dentes de crianças imigrantes para comprovar que são menores de idade antes de serem admitidas no país, apesar da rejeição do governo à medida.

Mas é preciso olhar além das fronteiras da União Europeia para encontrar os políticos que mais se comparam a Hitler, como, por exemplo, o presidente russo Vladimir Putin. Não por seu nacionalismo do “super macho alfa”, mas por sua política externa.

Hillary Clinton, David Cameron e o Príncipe Charles já argumentaram que Hitler ocupou a Tchecoslováquia usando como desculpa o tratamento aos alemães étnicos, enquanto Putin citou o destino dos russos étnicos da Ucrânia e da Criméia para justificar seu envolvimento militar nestes conflitos.

Aqui, Hitler lança uma sombra intrigante. A lição mais simples pode ser que apenas uma ação militar é capaz de deter um agressor como esse. Mas isso não aconteceu.

É interessante que os defensores de Putin tirem conclusões diferentes: para eles, isso é o que acontece quando um grande império está ferido e é tratado como um pária.

Talvez seja uma falácia, mas é interessante que para os políticos ocidentais que fazem a comparação com Hitler, assim como seus antecessores da década de 1930, considerem a perspectiva de um conflito algo ruim demais para assumirem o risco de agirem. Então, a sombra de Hitler leva a uma sensação de impotência.

E há mais uma coisa sobre o Grande Ditador. O homem que quase comandou o mundo foi por algum tempo motivo de piada.

Então, quando nos voltamos para o candidato republicano à Presidência americana Donald Trump em busca de lições sobre essa grande sombra, não tem nada a ver com imigração e nacionalismo ou o tratá-lo como uma pessoa horrorosa, mas sobre subestimar ou superestimar alguém.

Em cada estágio da ascensão de Hitler ao poder, sábios comentaristas declararam que sua jornada havia chegado ao fim – o carismático arrivista havia dado um passo maior que a perna.

Mesmo pouco antes de sua nomeação como chanceler alemão, Hitler era caçoado como pouco sofisticado, um demagogo sem habilidades que havia chegado o mais longe que podia.

Nacionalistas (não nazistas) e o establishment diziam que, uma vez no poder, ele seria imobilizado pelos burocratas. Ele até poderia incendiar as massas, mas os adultos o controlariam.

Um desdém similar da mídia e os principais políticos americanos os levou a calcular mal o apelo de Trump, seu poder persistente e sua crua habilidade.

O Partido Republicano está obviamente dividido. Há muitos que pensam serem capazes de amordaçar Trump se ele triunfar, o que não quer dizer que ele seria como Hitler no poder.

Mas os republicanos e representantes do establishment que pensam que ele será um animal de carga dócil que levará à frente suas políticas precisam rever sua opinião.

O que me leva a uma segunda comparação. Hitler era um político determinado, que assumia compromissos grandiosos e políticas pouco detalhadas. Sua essência era o compromisso em tornar a Alemanha grande de novo ou, em termos atuais, “tomar de volta seu país”. Como isso seria feito raramente foi explicitado por ele.

E o ponto é justamente esse – a natureza transformadora de sua própria figura garantiria que a missão fosse cumprida. De forma similar, Trump depende de propagandear Trump. Seus negócios e acordos e sua história de sucesso multimilionário são a garantia e a promessa.

Depois de todas as revelações recentes de abuso cometidos contra mulheres, pode parecer estranho que Trump dependa de sua própria personalidade para convencer os eleitores, mas ele de fato precisa disso. Ele próprio é a pedra filosofal de carisma que pode transformar um metal comum em ouro.

A mensagem ainda é: não o subestime.

(UOL)