Quase 6 meses após tragédia da Vale, uso da água do Paraopeba segue sem previsão; impacto ao meio ambiente ainda é analisado
“Infelizmente, você não vê mais vida no rio”, lamenta Edna Maria Ferreira dos Santos, de 29 anos, que tinha o Rio Paraobepa como fonte do sustento da família.
Há quase seis meses, a jovem e outras milhares de pessoas que vivem às margens do rio viram as águas se tornarem impróprias para qualquer tipo de uso ao mesmo tempo em que eram tingidas pelo rejeito de minério despejado no rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Edna mora em um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), instalado em São Joaquim de Bicas, município vizinho ao local da tragédia. Sem conseguir emprego na região, ela e o marido viviam da pesca.
“Na época, quando a gente veio para cá, a gente via o rio como uma forma de rendimento para a nossa família, a gente pescava, vendia os peixes, aproveitava o rio até mesmo para lazer. Nós gostávamos até de dar uns ‘tchibuns’ na água, de nadar. Então, a nossa forma de sobrevivência aqui mais era o rio mesmo. A gente gostava demais do rio”, diz.
Edna Maria Ferreira dos Santos diz que ‘não vê mais vida’ no Rio Paraopeba — Foto: Raquel Freitas/G1
Segundo Edna, foi com a tragédia, contraditoriamente, que o companheiro conseguiu um serviço. Agora, ele trabalha instalando cerca em volta do rio, que era responsável por 30% do abastecimento da Grande BH. A captação de água no Paraopeba foi inaugurada pela Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), em dezembro de 2015, como uma ação para solucionar a crise hídrica que a região enfrentava naquele momento.
Quase seis meses após o desastre, as orientações sobre a suspensão do uso da água permanecem inalteradas. A Copasa afirma que a Região Metropolitana não corre risco de desabastecimento, mas não descarta a adoção de medidas como racionamento e rodízio a partir do ano que vem. As obras de um novo ponto de captação no rio, acima da área afetada, devem ser inauguradas em setembro do ano que vem, segundo a companhia. Em nota, a Vale disse que vem mantendo reuniões periódicas com a concessionária e demais autoridades para discutir as medidas necessárias à continuidade do abastecimento nos municípios afetados pelo rompimento da barragem.
“A nossa recomendação de que não se utilize a água do Paraopeba permanece vigente. Não houve nenhuma manifestação do governo do estado diferente daquela que recomenda a suspensão [do uso] da água, ou seja, da água bruta, da água in natura no rio até o município de Pompéu. E nós estamos avaliando porque não é só uma questão ambiental, é uma questão de saúde pública”, afirma a diretora-geral do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), Marília Melo.
Atualmente, segundo ela, há 14 pontos de monitoramento das águas mantidos pelo instituto, dos quais sete já eram inspecionados pelo órgão antes da tragédia, sendo possível fazer uma avaliação mais efetiva da situação do rio anterior e posterior ao desastre.
Rio Paraopeba, no centro de Brumadinho, tomado pela lama dias após o desastre — Foto: Raquel Freitas/G1
Um dos aspectos analisados é o de turbidez da água – um parâmetro que estabelece a quantidade de sólidos na água. “Nos nossos dados, chegou a 34 mil [unidades de turbidez] próximo ao ponto de captação a Copasa. E tem um dado da Copasa que chegou a 67 mil. Para as pessoas terem um referência, o limite que a norma estabelece são cem unidades de turbidez”, explica. De acordo com Marília, também houve alteração quanto à quantidade de alumínio, ferro e manganês no rio. Ainda foi detectada, em um primeiro momento, a presença de outros metais, como chumbo, cobre e mercúrio, o que, segundo ela, não é mais verificado desde março.
Rejeito no fundo do rio
“Atualmente, as condições de qualidade da água são bem melhores em relação àquele período inicial. A gente já tem em alguns pontos do Rio Paraopeba uma condição próxima ao que era anterior. Mas o que a gente tem falado: significa que já podemos utilizar [a água], que o rio está em boa qualidade? Ainda não temos a segurança para dizer isso. Por quê? Porque o rejeito está no fundo do rio”, pontua. Uma das preocupações é que o minério que está no leito do curso d’água seja revolvido quando vier a próxima temporada de chuva, voltando à superfície e piorando a qualidade hídrica novamente.
Uma grande apreensão dos ambientalistas é em relação ao Rio São Francisco. Em março, a ONG SOS Mata Atlântica afirmou que ele havia sido atingido pelo rejeito, o que não foi confirmado pelo Igam. Segundo o órgão, o reservatório de Retiro Baixo segue impedindo que os sedimentos da mineração sigam o curso do Paraopeba para além desse ponto. A diretora-geral do instituto avalia que há uma grande um possibilidade que, de fato, as águas do Velho Chico se mantenham sem contato com o rejeito, mas, segundo ela, “a gente não pode afirmar que [o risco] está descartado”.
Atualmente, águas do Paraopeba estão mais claras, mas, segundo ribeirinhos coloração ainda está alterada — Foto: Raquel Freitas/G1
Em junho, a Vale anunciou que concluiu uma “importante etapa” para a melhora da qualidade hídrica com a instalação de uma estrutura, denominada “cortina de estacas-pranchas”, que tem como objetivo diminuir o carreamento de rejeito do Ribeirão Ferro-Carvão para o Rio Paraopeba e que direciona a água com sedimentos para uma estação de tratamento de água.
“Essa estação de tratamento que a Vale construiu tem capacidade para tratar a vazão que está agora lá, mas, no período de chuva, com o aumento de vazão, provavelmente alguma ampliação deverá ter que ser realizada para tratar toda vazão do Ferro-Carvão”, projeta a diretora-geral do Igam. Segundo a Vale, a estação tem capacidade para tratar aproximadamente 2 milhões de litros por hora. Marília acrescenta que, antes da próxima temporada chuvosa, a intenção é que se retire o rejeito em um trecho inicial do leito do rio.
Segundo a Vale, estão em construção barreiras hidráulicas, que têm a finalidade de reter sedimentos, permitindo a passagem de água, e um dique, que servirá para conter material sólido mais fino. A mineradora informou que as obras estão em andamento e devem ser concluídas até o final deste ano.
Para cacique de aldeia indígena, contaminação do rio é como a perda de um parente em um massacre — Foto: Raquel Freitas/G1
Passado praticamente um semestre da tragédia, o que se vê em pontos ao longo do rio é o rejeito depositado em suas margens. Essa é a paisagem, por exemplo, com a qual os índios Pataxó-Hã-hã-hãe, da aldeia Naô Xohã, são obrigados a conviver diariamente em São Joaquim de Bicas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
“É um parente nosso que a gente perdeu”, lamenta o cacique Hayô. Para ele, o sentimento é o da falta de um membro da aldeia, morto em um massacre.
“O rio é importante para o nosso povo Pataxó-Hã-hã-hãe, porque ele é um rio de instrumento sagrado. Nós usávamos ele para poder nos consagrar, consagrar nossas crianças, fazer o batizado dentro da nossa água, as nossas irmãs águas. (…) Então, simplesmente estamos com o nosso rio atingido. E está um psicológico muito ruim dentro da nossa comunidade”, diz.
Rejeito se acumula nas margens do Paraopeba, em São Joaquim de Bicas, na Grande BH — Foto: Raquel Freitas/G1
Impactos à fauna e vegetação ainda são analisados
A aldeia fica perto do acampamento do MST, onde a jovem Edna afirma que, além dos peixes, outros animais como capivaras sumiram do Paraopeba.
De acordo com o diretor-geral do Instituto Estadual de Florestas (IEF), Antônio Malard, até o momento, não foi verificada a extinção de nenhuma espécie por causa do desastre, mas os impactos na fauna ainda são estudados.
“No caso de animais terrestres, com certeza não houve extinção. Agora, das espécies aquáticas, a gente está avaliando ainda”, esclarece.
Segundo a Vale, até o dia 9 de julho, foram registradas 15.210 ocorrências de fauna e de carcaças de animais. De acordo com dados do instituto, cerca de 40 animais silvestres terrestres foram resgatados vivos após o rompimento da barragem; cinco morreram.
Vaca atolada na lama que vazou da barragem em Brumadinho — Foto: AFP/Douglas Magno
Mas Malard destaca que a maior parte dos resgates se refere a animais domésticos. Segundo o IEF, o número chegou a cerca de 550. Já a quantidade de atendimentos superou 600. Atualmente, mais de 500 animais permanecem sob os cuidados da mineradora. Aproximadamente 70 foram devolvidos aos donos, e cerca de 25, encaminhados para adoção ou criadores. Neste período de cerca de seis meses, de acordo com o IEF, quatro animais domésticos morreram.
De acordo com Malard, inicialmente, houve descumprimento da Vale em relação ao atendimento aos animais, o que gerou a aplicação de multas. De acordo com a mineradora, o cuidado com a fauna mobiliza 20 equipes, totalizando quase 230 pessoas entre veterinários, biólogos, zootecnistas e profissionais de várias áreas do meio ambiente.
Em relação à vegetação impactada, Malard afirma que diagnósticos também estão sendo feitos para mensurar os impactos da tragédia. Segundo ele, até o momento, foi possível apenas fazer uma análise preliminar.
Lama da Vale em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte — Foto: Ibama/Divulgação
“Foram cerca de 150 hectares de áreas afetadas pelo que a gente tem de levantamento por imagem de satélite. Isso equivale, só em ordem de comparação, a cerca de 150 campos de futebol. Entretanto, essa foi uma análise preliminar feita por imagens de satélite. Então, pode ser que agora com as idas a campo intensificadas em razão de o Corpo de Bombeiros estar liberando algumas áreas nesse momento, porque antes a gente nem conseguia ir a campo para fazer essa mensuração, que esse número de espécies de vegetação que foi atingido possa ser aumentado. Talvez não muito significativamente em relação a 150 hectares, mas há uma possibilidade que esse número seja um pouco aumentado”, afirma.
A área total tomada pelo rejeito, da barragem até o encontro com o Rio Paraopeba, é de mais de 290 hectares, conforme o IEF.
Segundo a Vale, o planejamento do trabalho de remoção dos rejeitos é feito em conjunto com o Corpo de Bombeiros. De acordo com a mineradora, em um trecho de dez quilômetros, entre a barragem e a confluência do Ferro-Carvão com o Paraopeba, está concentrado o rejeito mais espesso. A empresa estima que ali estejam depositados entre 6 milhões de m³ e 7 milhões de m³ do material que vazou em 25 de janeiro.
“Até agora foram removidos cerca de 750 mil m³ de material, que, após vistoria do Corpo de Bombeiros, são transportados para uma área dentro da Mina Córrego do Feijão, previamente definida e autorizada pelos órgãos competentes”, informou a Vale.
Mato brotou sobre o mar de rejeito que secou em área atingida — Foto: Raquel Freitas/G1
Recuperação possível?
Em alguns locais, como na região do bairro Parque da Cachoeira, em Brumadinho, o mar de lama hoje se esconde em meio ao mato que brota sobre o rejeito seco.
Apesar disso, a agricultora Soraia Aparecida Campos, de 42 anos, que teve toda sua plantação varrida pelo rompimento da barragem, não acredita que o ambiente poderá se recuperar ali.
“Para nós da agricultura, isso aqui não tem nem como mais ter vida”, lamenta.
Área onde ficava plantação foi tomada pela lama e hoje está em parte encoberta por mato — Foto: Raquel Freitas/G1
De acordo com o diretor-geral do IEF, passado praticamente um semestre, ainda não é possível dizer se o meio ambiente voltará a ser como era antes do desastre e quanto tempo levaria para essa recuperação.
“Não dá para afirmar isso agora, é muito cedo. Não é fácil voltar ao que era. Com certeza, se isso acontecer, será em muitos e muitos anos. Mas são os estudos, são os monitoramentos que estão sendo realizados, o plano recuperação, ou seja, uma série de ações que está sendo desenvolvida por todos atores envolvidos que vão dizer e fazer com que a gente possa chegar, num futuro, o mais próximo possível do que era antes. Mas é uma situação bem difícil atingir o nível que existia anteriormente ao desastre”, afirma.
Medidas para recuperação definitiva do meio ambiente ainda não foram definidas — Foto: Raquel Freitas/G1
Em relação ao Paraopeba, a diretora-geral do Igam diz que também não há como precisar o tempo necessário para que o rio se recupere. “Existem tecnologias disponíveis para isso. A nossa expectativa, inclusive, é que ele, com as medidas de compensação que nós estamos propondo, como a universalização do saneamento nos municípios diretamente impactados, chegue a uma qualidade melhor do que era antes”, pontua. Segundo ela, a proposta, articulada com prefeitos da região, é que a Vale adote como medida compensatória o tratamento de esgoto dos municípios atingidos.
Enquanto ações para a recuperação definitiva do rio não são tomadas, os Pataxó-Hã-hã-hãe cultivam a esperança de poder, um dia, voltar a estar em contato com as águas, que consideram sagradas.
“Nós acreditamos que o rio vai se recuperar, mas vai demorar um bom tempo (…) Eu vejo que ele vai se levantar e vai reviver de novo. Nosso Tupã vai trazer ele de volta para o nosso povo”, diz o cacique.
Índios Pataxó-Hã-hã-hãe acreditam que rio será recuperado — Foto: Raquel Freitas/G1
Fonte: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/07/23/quase-6-meses-apos-tragedia-da-vale-uso-da-agua-do-paraopeba-segue-sem-previsao-impacto-ao-meio-ambiente-ainda-e-analisado.ghtml