Ex-morador de rua lança livro na Bienal do Rio
Domingo, 1º de setembro de 2019, pouco depois das 13h. Léo Motta caminha maravilhado com o que vê na Bienal do Rio. Milhares de livros, centenas de estandes e muitos corredores lotados. Todos os elementos parecem encantá-lo.
Jamais, nem nos momentos de maior otimismo, imaginou que estaria ali como visitante – muito menos como autor. Mas é o que vai acontecer dentro de pouco mais de uma hora, quando lançar de forma oficial “A vida além da marquise”, relato literário dos seis meses nos quais viveu como morador das ruas do Rio de Janeiro.
Experiência nascida do desejo de não ver mais o sofrimento que seu vício em drogas causava à mãe.
“Ela ficava triste demais ao me ver daquele jeito. Eu havia enlouquecido por conta das substâncias que ingeria. Chegou um momento no qual a coisa mais humana que podia fazer por ela e pela minha família era desaparecer, ir embora. Foi quando eu parti para as ruas. Achava que já havia chegado ao meu ponto mais baixo, mas meu inferno começou ali”.
A perda do filho e o vício em drogas
As drogas entraram na vida de Léo as 14 anos, por meio de colegas de bairro. Durante sete anos, foi, nas palavras dele mesmo, um usuário recreativo. Aos 21 anos, porém, o assassinato de um filho de três anos o levou à cocaína – vício que manteria pelas 14 anos seguintes.
“Sempre fui trabalhador, mas pobre. Terapia não era uma possibilidade. Entrei de cabeça no que não devia – o vício foi o meu divã. Na maior parte do tempo, usei cocaína, mas também experimentei crack. A partir daí, as coisas se descontrolaram. Além de sair de casa, abandonei meu emprego. Quando me dei conta, já havia começado a catar comida nas latas de lixo e a dormir sob as marquises”.
A passagem de Léo pelas ruas cariocas o levou a vários bairros da cidade. Em dois deles, conheceu a crueldade humana de forma mais direta.
Já sem ter noção de há quantos dias não comia, entrou em uma padaria em Copacabana. Ali, viu uma senhora de pouco mais de um metro e meio, pele clara, aparência gentil e gestos suaves. Apesar da fraqueza, aproximou-se e perguntou se ela poderia lhe comprar um pão.
“Ela olhou para mim, não disse nem sim, nem não e, logo em seguida, cuspiu no meu rosto. Eu te confesso que, depois desse instante, não me lembro de mais nenhum detalhe daquele dia. Um muro se levantou entre mim e o resto do mundo ali, sabe?”.
Pouco tempo depois, em um dia típico de temperatura elevada no Rio de Janeiro, teve a ideia de entrar em um restaurante na Tijuca para pedir água – sentia muita sede.
O segurança do estabelecimento pediu que aguardasse. Pouco depois, retornou com um copo plástico, cheio de água e gelo.
“Engoli tudo de uma vez. Em dois segundos, senti um sabor muito forte na boca e cuspi. Ele havia colocado sal na água. Olhei para a porta do restaurante e o segurança, sorria, dizendo que havia feito aquilo para eu nunca mais voltar ali. Sentei no chão e comecei a chorar. Fica difícil ter esperanças depois disso, não?”
Escritor Léo Motta lançou seu primeiro livro na Bienal do Rio mostrando como é viver nas ruas — Foto: Carlos Brito/G1
PM ajudou na recuperação
Os meses passaram e a vida de Léo entrou em um ciclo repetitivo. Costumava dormir em frente ao Hospital Souza Aguiar, no Centro, e passava os dias no Campo de Santana, logo em frente.
O único calçado que possuía – um chinelo – arrebentou. Tinha uma mochila velha, poucas roupas e nenhuma esperança de recuperação.
Certa manhã, ainda mais dormindo que acordado, sentiu que algo tocava uma de suas pernas. Ao abrir os olhos, viu que se tratava de um policial militar. Esperou pelo pior.
“A relação de moradores de rua com a PM nem sempre é boa, mas este policial era diferente. Fez várias perguntas, parecia interessado na minha vida. Depois que contei minha história, ele pediu que eu o acompanhasse. Achei que me levaria a uma delegacia, mas ele me conduziu até uma assistente social no Largo da Carioca. Nunca vou me esquecer: seu nome era Ana Lúcia. Ela também pediu para eu contar minha história – e foi a partir daí que as coisas começaram a mudar”.
Ele acabou encaminhado à Associação Solidários Amigos de Betânia. Localizada em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio, a instituição se dedica à recuperação de moradores de rua.
Eram 9h de 9 de janeiro de 2017 – data e horário do início do renascimento de Léo, um processo que levou 224 dias e 896 refeições para ser concluído, como ele mesmo gosta de relembrar.
A partir dali, e já livre dos vícios, ele começou a ajudar a instituição no processo de resgate de outros moradores de rua – até agora, já recuperou 22 pessoas.
O escritor Léo Motta lê seu primeiro livro, ‘A vida depois da marquise’, lançado na Bienal do Rio — Foto: Carlos Brito/G1
Das marquises ao livro
Já fora das ruas, Léo procurou estabelecer uma rotina. Certo dia, por conta de um engarrafamento, o ônibus onde estava parou em frente à passarela 9 da Avenida Brasil, no Parque União. Foi quando ele viu, pela primeira vez em muito tempo, uma cracolândia.
“Aí a ficha caiu. Compreendi que precisava contar tudo pelo o que eu havia passado. Peguei o celular velho e sem tampa traseira que tinha naquela época, entrei em uma rede social e decidi criar uma página. Quando já estava na Leopoldina, olhei pela janela e vi uma das últimas marquises sob a qual havia dormido. Aí surgiu a ideia do nome: ‘A vida depois da marquise’. Em semanas, o perfil já tinha 30 mil seguidores”.
E foi um deles que sugeriu a Léo que as histórias fossem transformadas em um livro.
Após conseguir R$ 3,8 mil por meio de um site de financiamento coletivo, o objetivo se transformou em realidade e o lançamento feito na tarde de domingo na Bienal foi a consolidação dessa história.
“E escrevi o livro em seis meses no mesmo celular velho e sem tampa. Acredita?”, pergunta Léo, sorrindo, a poucos minutos de apresentar sua obra a outros moradores de rua, em um dos dias mais lotados do festival literário.
“Ninguém nasce na rua, mas todos podem acabar nela. Espero que meu livro mostre que a vida das pessoas pode seguir por caminhos tristes, mas que e sempre possível sair deles”.
Fonte: G1