O enigma de Cristina Kirchner
Se há uma dúvida que persegue os argentinos às vésperas das eleições não é sobre quem sairá vencedor, mas o papel que a vice-presidente Cristina Kirchner terá no provável governo de Alberto Fernández. Durante a campanha eleitoral, estrategicamente, o candidato peronista tomou distância de sua companheira de chapa. A dupla apareceu em público em apenas quatro ocasiões, incluindo o comício de encerramento.
Duas vezes presidente e atual senadora, Cristina seria a candidata nata, porém, com nove acusações de corrupção nas costas, designou Fernández, seu ex-chefe de gabinete, para liderar a chapa peronista. A decisão surpreendeu os mais céticos; afinal, o atual candidato a presidente deixou o governo falando mal de Cristina.
Se vencer no domingo, será o chefe da ex-presidente. Mas quem de fato exercerá o poder? Ao que tudo indica, esse, sim, será o seu maior desafio, se eleito. Fernández chegou a se irritar, na campanha, com as especulações sobre a difícil convivência entre os dois e a possível ingerência de Cristina nas decisões do futuro governo.
Foi veemente ao descartar o papel de fantoche, adiantando, contudo, que sempre consultará a ex-presidente “por sua experiência” no cargo. “Nosso grande acerto foi entender que divididos fazemos um favor aos opositores”, alegou.
O eleitor, no entanto, se mostra dividido sobre as atribuições da dupla: segundo a pesquisa da D’Alessio IROL y Berensztein, 45% acreditam que quem mandará é Cristina; 41% acham que as principais decisões caberão a Fernández.
Como observou o editor-chefe do “Clarín”, Ricardo Kirschbaum, em artigo na revista americana “Foreign Policy”, Fernández terá que construir sua própria base do poder do zero, recorrendo a aliados nos setores moderado e sindicalista, enquanto lida com uma companheira de chapa muito mais poderosa e enfrenta uma crise socioeconômica crônica no país.
As pesquisas indicam que a chapa kirchnerista está entre 16 e 22 pontos à frente da liderada pelo atual presidente Mauricio Macri. A vantagem ainda é maior do que a conquistada nas prévias de agosto, que funciona como uma sólida pesquisa eleitoral.
“Desde as primárias, o presidente se transformou num cadáver político. E formalmente ainda há uma eleição a ser disputada no domingo. Mas entre agosto e outubro, o governo enfrentou uma travessia no deserto para tentar conter a inevitável erosão das reservas e a escalada do dólar”, analisou Fabio Giambiagi, chefe do Departamento de Pesquisas Econômicas do BNDES, em debate no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
Ironicamente, Macri devolverá o país a seu sucessor em uma situação econômica muito mais grave em relação à que herdou há quatro anos de sua antecessora: 35,4% da população se encontram abaixo da linha da pobreza, a inflação anual é de 53%, o desemprego chegou a 10,6% — o maior índice em 13 anos. Em dois meses, o dólar pulou de 46 para 59 pesos argentinos.
É esta dura realidade que o novo presidente argentino terá que destrinchar logo que assumir. Alberto Fernández é considerado um político com habilidade política e adota o tom moderado, mas lhe falta o carisma de sua companheira de chapa, muito popular nas camadas mais pobres. O candidato peronista insiste que ele e Cristina Kirchner são um só e falam a mesma língua. Falta saber qual dos dois mudou.
Fonte: G1