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Vítimas de racismo e injúria racial relembram crimes na BA: ‘Dói na alma até hoje’; casos cresceram 1.200% em 6 anos no estado

“Eu não digo que é uma cicatriz. A gente fala dela porque já sarou. Eu estou falando de uma ferida eterna, que só existe dentro de mim. Dói na alma até hoje”. Essas são palavras de Crispim Terral, vítima de racismo por um gerente da agência da Caixa Econômica do bairro Dois de Julho, no centro de Salvador, em fevereiro deste ano.

[O G1 publica, até a próxima sexta-feira, 22, uma série de reportagens especiais voltadas para o Novembro Negro]

Além dele, conforme dados do Ministério Público Estadual (MP-BA), outras 191 pessoas foram vítimas do mesmo crime, além de injúria racial, entre janeiro e 6 de novembro deste ano, na capital baiana. Com isso, a quantidade de denúncias já ultrapassa o número total registrado em todo ano de 2018, quando o órgão contabilizou 190 queixas.

Um levantamento do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, ligado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), confirma essa tendência de crescimento dos casos. Segundo o órgão, em seis anos, as denúncias aumentaram em 1.210% no estado.

Os números começaram a ser contabilizados em 2013. Naquela época, 10 casos foram recebidos pelo centro. Em 2016, foram 90. Já em todo ano de 2018, a órgão recebeu 131 denúncias. Entre janeiro e outubro deste ano, por sua vez, 121 registros foram adicionados ao balanço. [Saiba como denunciar crime no final da matéria]

Nesta quarta-feira (20), Dia da Consciência Negra, momento marcado por mobilizações de combate ao racismo e garantia dos direitos da população negra, o G1 resgata essas histórias, através de entrevistas exclusivas com três das várias vítimas do estado. [Veja os depoimentos abaixo]

Albert Ângelo Santana

Albert Angelo fala sobre o crime de injúria racial por qual passou

Albert Angelo fala sobre o crime de injúria racial por qual passou

Albert Ângelo Santana sofreu o crime de injúria racial por uma passageira, quando trabalhava como motorista de aplicativo. Segundo a vítima, a situação ocorreu durante um desentendimento em função do trajeto da corrida. Na ocasião, a mulher chegou a dizer que o problema todo era por causa da cor de Albert.

Segundo a vítima, é comum os insultos durante a rotina de trabalho, mas, apesar disso, afirmou que essa foi a primeira vez que passou por um caso desse tipo, enquanto atuava como motorista. Por outro lado, Albert pontuou que, muitas vezes, já foi alvo de discursos racistas na rotina diária.

“A situação do racismo eu já passei outras vezes antes sim. Aquelas brincadeiras sem graça, brincadeiras entre aspas. Aquelas piadinhas que a gente escuta, dá uma resposta no máximo, mas tem que levar a vida. Não dá para levar tudo de peito. Não dá para enfrentar todos os racistas assim. Já sofri outras situações dessa”, disse.

Em alguns desses casos, a própria filha de Albert foi usada como ponte para que colegas e amigos próximos questionassem o parentesco dele com a criança.

“Minha esposa tem pela clara, minha filha também nasceu com a pele clara. E sempre tem várias piadinhas de amigos e também de mais próximo. “Essa menina é sua filha mesmo? ” Naquele momento ali você leva até na brincadeira para não deixar a pessoa mal, mas machuca muito por dentro uma situação dessa”, pontuou.

O crime de injúria racial pelo qual passou ocorreu em outubro deste ano. Apesar disso, Albert ainda tem presente nos pensamentos tudo o que vivenciou e sentiu naquele dia.

“Depois do momento que eu desliguei o celular foi horrível. Eu nem tive como dirigir direito. Eu me senti muito mal. Foi horrível. Tentei ir para casa. No caminho de casa parei o carro umas duas vezes, nervoso, tremendo com a situação. Quando cheguei em casa, que contei para minha família, eles se sentiram muito mal. Foi uma sensação horrível. É um tipo de coisa que a agente acha que nunca vai acontecer com a gente. Quando acontece com a gente mesmo, quando a gente sente na pele, é uma sensação horrível. Muito constrangedor mesmo”, contou.

Para ele, é difícil que novos casos de injúria racial e racismo deixem de existir, diante de uma sociedade racista e que finge que o problema não acontece.

“Muitas pessoas falam que não existe, que é brincadeira, mas existe realmente. Que meu caso sirva de exemplo para outros. Vamos tentar que não aconteça mais isso, acho meio difícil, mas sempre é bom tentar. Todos nós vemos casos de racismos, esses fatos que acontecem”, concluiu Albert.

Por meio de nota, a Polícia Civil disse que o caso segue sendo apurado pela 12ª Delegacia Territorial (DT) em Itapuã.

G1 entrou em contato também com o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) e com o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) para atualizar o caso, mas, até a última atualização desta reportagem, não obteve resposta.

Crispim Terral de Souza

Crispim Terral fala sobre o crime de racismo por qual passou em agência bancária

Crispim Terral fala sobre o crime de racismo por qual passou em agência bancária

O empresário Crispim Terral de Souza relatou que foi vítima de racismo por João Paulo Vieira Barreto, gerente de uma agência bancária, através de um vídeo e postagem divulgados pelas redes sociais. A filha dele presenciou todo o crime. Na abordagem, um policial chegou a dar um “mata-leão” nele.

Segundo Crispim, a confusão começou após um dos gerentes do banco o deixar por quase cinco horas à espera de atendimento. Depois de grande repercussão, João Paulo foi afastado pela Caixa Econômica.

Após nove meses do crime, Crispim conta que, apesar da lembrança, luta para seguir com a vida normal e para reduzir os casos de racismo, impregnados no Brasil.

“Seguimos com luta e resistência. A gente [família] vai levando a vida normal. Eu venho, e tenho certeza, que vou continuar até o último dia da minha vida lutando contra esse racismo, impregnado no nosso país”, disse.

No entanto, Crispim diz que tem sido difícil falar sobre o caso dentro de casa, principalmente na frente da filha.

“A gente não consegue ter um diálogo referente ao acontecido. Isso toca muito. Eu sinto. Imagine ela, uma criança presenciar o pai praticamente ser assassinado na frente dela. Por que, um golpe daquele, é para finalizar alguém. Foi isso que ele tentou fazer, me finalizar. A gente vem conversando, discutindo, lutando”, relatou.

Ele contou ainda que o crime pelo qual passou em fevereiro trouxe lembranças de outros momentos que vivenciou desde pequeno, principalmente na escola.

“Eu já vivi outros momentos racistas, mas eu não tinha ciência do que era. [Eu era] separado pela cor. [Não podia] ficar na fila juntamente com outros. E se eu tivesse na fila eles saíam, iam para outro local, por eu ser negro. Lembro que nas brincadeiras eram todos brancos, mas quando eu entrava a brincadeira parava. Falavam “o neguinho vai entrar” , pontuou

G1 entrou em contato também com o Tribunal de Justiça, mas, até a última atualização desta reportagem, não obteve resposta.

Maria Angélica Calmon

Maria Angélica fala sobre o crime de racismo por qual passou em shopping de Salvador

Maria Angélica fala sobre o crime de racismo por qual passou em shopping de Salvador

O crime pelo qual a assessora de formatura e eventos Maria Angélica Calmon passou foi relatado nas redes sociais. O caso ocorreu em abril deste ano, quando ela foi abordada e acusada de pegar uma pomada em uma farmácia de um shopping de Salvador.

A vítima chegou a jogar no chão tudo que estava dentro da bolsa para provar que não tinha furtado nada. Sete meses depois do caso, ela conta que já se pegou diversas vezes evitando usar bolsas grandes para não passar pela mesma situação.

“Passei um tempo usando bolsa pequenas, apesar de gostar de bolsa grande. Usava [bolsa] pequena para não sofrer nenhum tipo de suspeita. Eu estava tentando fazer uma coisa que não é do meu feitio para me proteger daquele tipo de abordagem. É humilhante”, disse.

Além dos acessórios, houve também mudanças em alguns hábitos: evitando frequentar a rede da farmácia e o shopping onde toda a situação ocorreu. Além disso, Maria Angélica disse que a família buscou ajuda médica para a neta, após ela presenciar o crime.

“No início, ela ficou um pouco confusa. Criou uma confusão de certo e errado e do que era aquilo que estava acontecendo com ela. Cria dúvidas na cabeça de uma criança de 7 anos”, contou.

Antes da neta, o filho da assessora de formatura e eventos também já havia vivenciado o racismo de perto, no mesmo local.

“Ele esqueceu o fone de ouvido no carro, saiu e foi buscar. Depois ele voltou correndo em minha direção. Aí, uma mulher, começou a gritar: ‘Cuidado, cuidado’. Ela achou que ele iria me assaltar, porque ele estava de sandália, de short, e ele tem o cabelo tipo o meu [black]. Eu disse: ‘Cuidado com o que?’. Ela disse: eu pensei que ele iria roubar sua bolsa”, disse.

A vítima afirmou ainda que chegou a pensar que estava segura na Bahia, estado que tem 81,1% da população formada por negros e pardos, antes dos casos que aconteceram com a família. Mas, percebeu, na prática, que ninguém está imune.

“Na Bahia, até os próprios negros que não se reconhecem como negros são racistas. Você vê todo dia isso na rua. Ninguém nasce racista, mas se torna. Não sei como uma melanina consegue provocar tanta reação ruim nas pessoas. Ser negro na Bahia é muito desafiador. O racismo acontece com todo mundo”, contou.

“Racismo vem de várias formas. Ele fere, ele mata, ele deixa marcas em você que nunca você vai consegui apagar. Ele deixa confusa uma criança que está formando sua personalidade, ele deixa marcas, dúvidas. Ele deixa a pessoa de uma forma tão magoada que você não quer que isso aconteça com ninguém, mais”, concluiu.

O caso de Maria Angélica é acompanhado pela 16ª Delegacia Territorial (DT) na Pituba.

Segundo o MP-BA, há um procedimento no órgão no qual todas as diligências foram adotadas. Apesar disso, a promotoria aguarda a conclusão do inquérito policial pela delegacia de polícia.

G1 também entrou em contato com Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), mas até a última atualização desta reportagem, não obteve resposta.

Como denunciar

Saiba algumas formas de denunciar casos de racismo e de injúria racial.   — Foto: Mateus Pereira/GOVBASaiba algumas formas de denunciar casos de racismo e de injúria racial.   — Foto: Mateus Pereira/GOVBA

Saiba algumas formas de denunciar casos de racismo e de injúria racial. — Foto: Mateus Pereira/GOVBA

Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA), 56 boletins de ocorrência relacionados aos crimes de racismo e injúria racial foram registrados na Bahia entre outubro de 2018 e setembro de 2019.

Há muitas pessoas que vão direto para as delegacias registrar o crime, mas existe uma série de redes de apoios que podem ajudar as vítimas pelo telefone e também por aplicativo. Veja a relação na lista abaixo:

O serviço, que é disponibilizado pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), foi disponibilizado durante o calendário estadual Novembro Negro. As pessoas que sofrerem ou presenciarem algum caso de racismo podem ligar para (71) 3117-7448, de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h, e também das 14h às 18h.

Todos os casos registrados por telefone vão ser direcionados para o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, responsável por oferecer apoio psicológico, social e jurídico às vítimas de racismo, além da intolerância religiosa.

O aplicativo Mapa do Racismo e Intolerância Religioso, lançado pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), é gratuito e o download pode ser feito em dispositivos dos sistemas Android ou iOS.

Com as diferentes categorias que podem ser caracterizadas como racismo e intolerância religiosa, o usuário do aplicativo é guiado por tutorial, onde irá aprender a identificar a natureza da ocorrência, com base nas classificações expressas pela lei.

Depois que o relato da ocorrência é feito no aplicativo Mapa do Racismo e Intolerância Religiosa, o registro gera um procedimento no MP. Esse documento é encaminhado ao promotor que atua na cidade em que o caso aconteceu.

Defensoria Pública da Bahia Ouvidoria cidadã

Os casos também podem ser registrados na Defensoria Pública. Há a possibilidade de fazer de forma presencial, indo até a Rua Pedro Lessa, no bairro do Canela, em Salvador. E também pelo Disque Defensoria: 129 – Opção 2. Ou ainda pelo e-mail: [email protected]

Fonte: G1 – Bahia