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Justiça sem medo: 10 anos depois da morte da juíza Patrícia Acioli, polícia mata 9 vezes mais em São Gonçalo

Por Felipe Freire, Felipe Grandin e Marco Antônio Martins, G1 e TV Globo

 

Justiça sem medo: 10 anos depois da morte da juíza Patrícia Acioli, polícia mata 9 vezes mais em São Gonçalo

G1

Dez anos depois do assassinato da juíza Patrícia Acioli, que investigava PMs que forjavam autos de resistência, o número de mortes cometidas por policiais é nove vezes maior em São Gonçalo, região em que ela atuava.

Justiça sem medo: 10 anos da morte da juíza Patrícia Acioli

Justiça sem medo: 10 anos da morte da juíza Patrícia Acioli

No primeiro semestre de 2011, ano em que Patrícia morreu, policiais do 7º Batalhão da PM (São Gonçalo) mataram 13 pessoas. No mesmo período de 2021, foram 120 mortes cometidas por policiais naquela área, segundo dados do Instituto de Segurança Pública. É um aumento de 823%.

(Essa reportagem faz parte de uma série que o G1 publica a partir desta quarta, batizada de ‘Justiça sem medo’, 10 anos após o assassinato da juíza Patrícia Acioli.)

A juíza foi morta com 21 tiros quando chegava em sua casa, em Piratininga, após sair do Fórum de São Gonçalo, onde trabalhava. Naquele dia, ela havia assinado os pedidos de prisão de dois policiais militares, que a seguiram e a mataram na mesma noite.

Eles integravam uma milícia que atuava no 7º Batalhão e estava sendo investigada pela juíza. Patrícia analisou mais de 100 autos de resistência na região e encontrou dezenas de relatórios forjados para encobrir execuções.

Batalhão que mais mata

 

Desde que Patrícia Acioli morreu, a área do 7º Batalhão foi a que registrou mais mortes por policiais entre as 42 de todo o estado. Foram 1.099 mortes por intervenção policial de setembro de 2011 até junho de 2021, segundo dados do ISP.

7º Batalhão da Polícia Militar do RJ, em São Gonçalo, foi o que mais matou desde o assassinato da juíza Patrícia Acioli em 2011 — Foto: Níkolas Espíndola/G1

7º Batalhão da Polícia Militar do RJ, em São Gonçalo, foi o que mais matou desde o assassinato da juíza Patrícia Acioli em 2011 — Foto: Níkolas Espíndola/G1

Os autos de resistência voltaram a crescer na região a partir de 2013 e dispararam em 2014. Mesmo com a pandemia, em 2020, 199 pessoas foram mortas pela polícia naquela região. O número é 10 vezes maior que o registrado no ano da morte de Patrícia.

Mortes por intervenção policial em São Gonçalo entre 2011 e 2021 — Foto: Níkolas Espíndola/G1

Mortes por intervenção policial em São Gonçalo entre 2011 e 2021 — Foto: Níkolas Espíndola/G1

PMs continuam recebendo salário

 

Dois PMs condenados pela morte de Patrícia Acioli continuam nos quadros da Polícia Militar, recebendo salários. O tenente-coronel Cláudio Luiz Silva de Oliveira e o tenente Daniel Santos Benitez Lopes.

O processo de expulsão dos dois ainda não foi concluído, uma década depois do crime. Cláudio recebe mensalmente R$ 39.497,40. Já Daniel ganha R$ 10.583, 05.

“Pra família gera uma indignação tremenda né? Porque o que que acontece? Se você levar em conta que já são dez anos, né? E até hoje eles não foram expulsos e o pior ainda: além de não ser expulso, ainda se torna um um peso para a sociedade”, diz Wilson Junior, ex-marido e pai dos filhos de Patrícia.

 

Em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que “a sua competência nos trâmites administrativos relativos aos dois oficiais já foi cumprida, repassando para instâncias superiores”. “Os processos na Justiça permanecem aguardando as decisões da Casa Civil e da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, onde tramitam.”

Sem controle

 

Apesar do alto número de mortes por intervenção policial no estado, não há, em nenhum órgão oficial do Rio, dados contabilizados que mostrem quantos autos de resistência viraram processo e, consequentemente, foram concluídos com a absolvição ou condenação de policiais envolvidos.

Em 2016, na conclusão da CPI dos Autos de Resistência, conduzida pelo então deputado estadual Marcelo Freixo, o relatório final detalhou os últimos estudos que contabilizavam o prosseguimento dos registros de mortes provocadas por policiais.

Em um deles, de 2005, um levantamento do sociólogo Michel Misse mostrou que 707 pessoas foram mortas e 510 registros de ocorrência foram parar nas delegacias. Desse total, foram instaurados 355 inquéritos. Dois anos depois,19 chegaram ao Tribunal de Justiça: 16 foram arquivados e apenas um havia sido julgado. À época, outros dois aguardavam julgamento.

Ana Clara Acioli, filha da juíza Patrícia Acioli, assassinada em agosto de 2011 por PMs do 7º Batalhão (São Gonçalo) — Foto: Marcos Serra Lima/G1

Ana Clara Acioli, filha da juíza Patrícia Acioli, assassinada em agosto de 2011 por PMs do 7º Batalhão (São Gonçalo) — Foto: Marcos Serra Lima/G1

Impacto da morte na família

 

Patrícia Acioli é descrita pelos familiares como uma pessoa determinada, que não se escondia de brigas nem tinha medo de enfrentar riscos para defender o que acreditava. Ao mesmo tempo, era uma mãe amorosa e uma filha presente.

“Tem uma frase que ela falava, que deixava até no gabinete dela, e falava sempre que era: ‘Para o triunfo do mal, basta que os bons não façam nada'”, diz Ana Clara, filha de Patrícia.

“Patrícia sempre foi muito destemida, né? Muito determinada”, diz Simone Acioli, irmã de Patrícia. “Tudo que ela fazia era com sucesso. Queria fazer Direito na Uerj, passou de primeira no vestibular. Quando fez a prova para a Defensoria, também passou no primeiro concurso. Depois ela resolveu ser juíza, também passou de primeira.”

 

Os familiares contam que a morte desestruturou a família e tem impactos até hoje. “A perda dela desestruturou a nossa família. Minha mãe tem Alzheimer, mas ficou muito deprimida depois da morte da Patrícia. As duas sempre foram muito agarradas. Então, minha mãe ficou realmente muito deprimida e a doença piorou muito depois da morte da minha irmã.”

Simone Acioli conta que o caso afetou a saúde dos familiares.”Então, se você pegar um histórico do julgamento, os dois anos, até nas fotos do enterro, minha mãe ainda está de pé. Nas últimas, minha mãe já estava em cadeira de rodas. E a minha outra irmã também ficou bem deprimida um tempo, por conta disso também. Enfim, a família inteira.”

Patrícia Acioli, Wilson Junior e os filhos Mike, Ana Clara e Maria Eduarda — Foto: Arquivo Pessoal

Patrícia Acioli, Wilson Junior e os filhos Mike, Ana Clara e Maria Eduarda — Foto: Arquivo Pessoal

“Foi tirado o direito ao aniversário da mãe, o direito ao Natal em família, a formatura que ela não vai estar presente, ao casamento que ela não vai estar presente”, diz Wilson Júnior, pai das duas filhas de Patrícia, Ana Clara e Maria Eduarda, e do enteado da juíza, Mike.

 

​”Meu filho quando se formou a mãe não tava lá, né? A minha filha, quando se formar, a mãe não vai estar lá. O Natal não é a mesma coisa, o Ano Novo, o aniversário da minha filha sempre tem uma cadeira vazia, né?”, completa Wilson Júnior.

“A palavra exata é destroçar, destruir. Porque é uma parte que eu nunca mais vou ter acesso. Tanto passado, quanto presente, quanto futuro. Havia diversas promessas que eu e ela a gente fazia que não serão mais feitas”, diz a filha Ana Clara.

“Foi uma parte totalmente destruída que a gente tem que lidar com essa dor. As pessoas falam assim muitas vezes pra gente: ‘Ah, vai passar, essa dor vai passar. Não, não passou'”, revela Ana Clara.

 

Ao G1, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro informou que, após ter confirmado as condenações dos réus, inclusive com a perda dos cargos públicos, “os advogados impetraram recursos que foram remetidos aos tribunais superiores em Brasília para julgamento”.

“Os recursos foram julgados improcedentes, e o processo voltou à primeira instância (a 3ª Vara Criminal de Niterói) no dia 12 de julho deste ano. A juíza titular da Vara determinou então a expedição das comunicações de resultado para os órgãos competentes”, prosseguiu.

“Além da ação penal, o tenente-coronel Claudio Luiz da Silva Oliveira e o tenente Daniel Santos Benitez responderam a processo disciplinar, o chamado Conselho de Justificação. Em 2019, decisões da 3ª e da 4ª Câmaras Criminais do TJ do Rio consideram os dois oficiais ‘indignos do oficialato’, aplicando-lhes a penalidade máxima de perda do posto e patente e, consequentemente, a demissão ex officio”, continuou.

Os dois oficiais entraram com recursos que serão julgados pelos tribunais superiores.

Fonte: G1 Rio de janeiro