Conheça a história de Rubra: uma professora transgênero na UFT que superou muitos desafios
O Câmpus da Universidade Federal do Tocantins (UFT), em Porto Nacional, poderia ser confundido com um parque devido ao seu espaço arborizado, entrelaçado por passarelas. Com seus prédios distribuídos de forma bem espaçada, o câmpus tem vocação na formação de professores ao abrigar os cursos de graduação em Ciências Biológicas, Geografia, História, Letras e Letras-Libras. Além dos cursos de Ciências Sociais e Relações Internacionais e os programas de pós-graduação.
O visitante também percebe facilmente a forte presença indígena através da casa do estudante situada dentro do próprio Câmpus. E é comum notar pessoas se comunicando em libras ao chegar na cantina. Com cabelos, unhas e vestido vermelhos, a professora Rubra Pereira de Araújo me aguardava para a entrevista neste cenário. Ela faz parte dos colegiados da graduação e da pós-graduação em Letras. E há um detalhe: é uma professora transgênero.
Sem chá revelação
Sem ultrassom, a mãe de Rubra, que já era mãe de um menino e uma menina, percebeu que na vez dela os “sintomas” eram iguais aos da irmã. Portanto, sua mãe sentia que esperava uma menina. Mas após o parto, foi registrado o nascimento de um menino em Porto Nacional, no dia de finados em 1975.
Rubra diz que sempre foi uma criança afeminada. Acostumada a usar o mesmo banheiro que todos em sua casa, foi na escola que surgiram os primeiros desafios sobre as suas questões de gênero. Se não era aceita no banheiro feminino, tampouco era fácil usar o banheiro masculino, pois já começaram nesta época os primeiros episódios de violências, injúrias e difamações.
Já aos 15 anos surgiu a primeira paixão por um coleguinha. “Não me entendia. Não tinha auto-aceitação. Então mudei de escola para não conviver mais com aquele colega. Era uma forma de também tentar fugir de mim”. Essa mudança também influenciou o futuro profissional de Rubra, pois ela foi para o magistério e iniciou sua vida de professora com aulas para crianças do Ensino Fundamental.
A profissão
Em 1995, iniciou a graduação em Letras pela então Unitins, no mesmo prédio em que hoje é a moradia estudantil do Câmpus da UFT em Porto Nacional. “Minha mãe chegou a trabalhar como gari e logo eu me tornei o arrimo da família”. Sem oportunidade de pós-graduação, Rubra trabalhou no Ensino Fundamental, Ensino Médio e chegou a ser coordenadora de uma escola.
Posteriormente, realizou especialização em Língua Inglesa e um mestrado à distância pela Espanha, que não teve convalidação no Brasil. Então, dessa vez retornaria à UFT para o mestrado em Letras, no câmpus de Araguaína. Em 2012, Rubra teve duas conquistas importantes: a aprovação na seleção para doutorado em Letras e para professora, ambas também no Câmpus da UFT em Araguaína. Com o passar do tempo, a mãe dela que permanecia em Porto Nacional ficou adoentada, e então Rubra ficou determinada a retornar à sua cidade natal. Sem conseguir a remoção interna, prestes a completar três anos como professora em Araguaína, Rubra prestou outro concurso na UFT. E desta vez foi aprovada para o Câmpus de Porto Nacional e o mesmo curso do qual era egressa.
O que ela mais gosta no trabalho é lidar com o ser humano, sobretudo com a linguagem, porque tanto um como o outro não são obras prontas. “A linguagem me encanta porque estamos sempre em construção. Faço a ponte entre o que a universidade produz e se isso repercute na educação básica. É muito significativo trabalhar com professores em formação inicial e com o professor que está em exercício na escola e discutir quais metodologias dão certo. Sempre trago a seguinte ideia: não estou aqui para trazer o conhecimento pronto e acabado, mas para inquietar e refazer o senso comum. A universidade tem um papel importante nisso. Parafraseando Paulo Freire: ‘A vida não é. A vida está sendo’.”
Transição tardia e acolhimento
Pouco após completar 40 anos de idade, apesar de estar bem sucedida profissionalmente e podendo cuidar de perto de sua mãe, não estava tudo bem para Rubra. A pesquisadora estava em crise existencial por tentar conciliar sua identidade biológica com aquela que sempre se identificou ao longo da vida, mas que sempre se sentiu obrigada a reprimir.
Com a ajuda de psicanalista, chegou à conclusão de que não dava mais para continuar assim. “Era a vida no entrelugar. Na sala de aula vestia uma calça jeans, uma camiseta e passava gel no cabelo. Mas à noite me travestia. A Rubra precisava desabrochar e para isso eu precisava me despedir da outra identidade que eu mantinha como oficial”. Um companheiro da época incentivou sua transição.
Uma parte de suas roupas era destinada ao nome morto – termo que ela mesma se refere para falar do seu primeiro nome de registro – e outra parte era utilizada por Rubra. A morte simbólica ocorreu com o ex-companheiro abrindo seu guarda-roupa e retirando todas as roupas masculinas e decidindo quais delas ficariam para ele e quais seriam descartadas. “Ele me disse ‘você não precisa mais disso’. Essa cena foi muito marcante para mim. De certa maneira matando a personalidade masculina para que a feminina se instalasse”.
Rubra explica também que o acolhimento pela sua mãe foi fundamental. “Desde criança eu me vestia com roupas femininas. E quando eu tinha 16 anos, conversei com a minha mãe sobre isso. Ela chorou bastante e disse: ‘Você vai precisar muito de mim’. Então ela comprou tecido, levou na costureira e me disse para ir até ela explicar como eu gostaria que fosse a minha roupa”.
Bem acolhida pela mãe e pelo companheiro, seu maior desafio foi ir para a sala de aula vestida de mulher. Para o seu alívio, os estudantes a receberam muito bem. E então ela iniciou sua hormonização, ainda de forma clandestina, sem acompanhamento médico. E aderiu ao nome social de Rubra. Posteriormente, através da justiça, Rubra também passou a ser o nome civil dela nos registros oficiais.
Fato curioso é que foi uma personagem interpretada pela atriz Susana Vieira, na novela Pedra sobre Pedra, quem deu origem ao nome. “Nas ruas é que me deram meu nome de guerra: Rubra Rosa. Era o nome da personagem e ainda tinha o mesmo prefixo do meu nome de batismo. Não tenho problema com o nome morto. Sou grata ao que ele trouxe para mim. Não quero rasgar as páginas da minha vida. Quero apenas virá-las”.
Randerson Rabelo está no sétimo período de Letras, é aluno de Rubra e se dispôs a comentar como é a relação da professora com os estudantes. “Ela está sempre cobrando uma desenvoltura muito boa da gente. Isso é muito bom porque ela deseja muito o nosso crescimento como docentes. Uma pessoa muito de luz, uma pessoa que está sempre falando sobre questões exteriores da sala de aula, porque como futuros profissionais da educação, a gente tem que ter um olhar crítico sobre a sociedade. A professora Rubra está sempre passando para a gente literaturas críticas e literaturas periféricas. É o nosso maior exemplo de diversidade que a gente tem aqui na Universidade. Uma frase que a professora Rubra gosta muito de falar, que eu gosto sempre de lembrar é: viva a diversidade. Eu acho que é a frase que ela mais usa com a gente”.
A educação e a transfobia
Ciente de que o país vive uma onda reacionária que afeta a sua existência, ela sabe que a educação é capaz de transformar, assim como transformou a sua vida. “Meu corpo já é uma militância. Quando sou chamada para eventos em escolas, chovem reações transfóbicas. Mas por outro lado, a escola está pedindo socorro. A escola quer aprender a lidar com meninos que são considerados afeminados e que sofrem violência por isso”.
Rubra reforça que a escola precisa falar de sexualidade ao citar a ocorrência de gravidez na adolescência, infecções sexualmente transmissíveis entre os jovens e abusos sexuais. “No ano passado, tivemos um caso de suicídio em Porto Nacional. Um jovem LGBTQIAPN+ que entrou em conflito com a família, com a religião e posteriormente com a própria escola. Então, esses assuntos estão entrando na escola pelos corpos transviados que lá estão. Por mais que a escola não queira ou se silencie”.
Com trabalhos sobre literatura trans e literatura homoafetiva, outro ponto que Rubra faz questão de comentar é que ela não quer que sua contribuição acadêmica se limite a questões de gênero. “Só sou chamada para bancas de TCC sobre diversidade. Uma vez escrevi um artigo sobre gêneros textuais e a revista se recusou dizendo que não iria trabalhar com esses assuntos. (Risos). Ou seja: nem leram e confundiram gêneros textuais com identidade de gênero. Como se eu só pudesse falar disso. Eu sou isso sim, mas não sou só isso. E permaneço em construção”, afirma.
Pesquisa
A dissertação de mestrado e a tese de doutorado de Rubra foram publicadas em livros pela Editora Metanoia. Rubra já orientou oito mestrandos. Abaixo uma lista de publicações disponíveis da pesquisadora:
Nome social na UFT
Você sabia que a UFT oferece a possibilidade de reconhecimento de nome social? O objetivo é atender às necessidades do respeito aos direitos humanos, à pluralidade e à dignidade da pessoa humana, a fim de garantir o ingresso, a permanência e o sucesso de todos no processo de educação. O procedimento é simples, basta preencher um requerimento informando o nome civil, nome social, matrícula e curso, conforme modelo disponível aqui e apresentar na Secretaria Acadêmica, a qualquer tempo. O procedimento está regulamentado desde 2015 e passou por atualização em 2017.
Por nome social entende-se aquele pelo qual a pessoa é reconhecida, identificada e denominada na sua comunidade e no meio social, uma vez que o nome civil não reflete sua identidade de gênero ou possa implicar em constrangimento. O nome social poderá diferir do nome civil apenas no prenome (nome próprio) e agnome, mantendo inalterados os sobrenomes.
Conheça o histórico do uso do nome social na UFT:
Em 2015, a UFT, por meio da Prograd, regulamentou o uso do nome social por meio da Portaria Normativa nº402 de 04 de março de 2015, nos sistemas, diários eletrônicos, alguns documentos, exceto diploma, e na Colação de Grau.
Ainda em 2015, a Portaria foi transformada em Resolução, dada a sua importância. Resolução Consuni nº 25-2015 – Regulamentação da utilização do Nome Social (Alterada pela Resolução Consuni nº 28-2017).
Em 2016, o Governo Federal Publicou o Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional;
Em 2017, a UFT atualizou a resolução (28-2017 – Alteração da Resolução Consuni nº 25-2015 – Utilização do Nome Social) para incluir o nome social nos Diplomas de Graduação e, desta forma, emitiu o 1º Diploma com uso do nome social.
Fonte: AF Noticias