Após batalha judicial de quase 4 anos, União tem até novembro para indenizar irmãos separados dos pais com hanseníase
Em 1963, quando os pais receberam o diagnóstico de hanseníase e tiveram de ser compulsoriamente internados em leprosários, os irmãos catarinenses Roberto e Ana (nomes fictícios) foram imediatamente afastados do restante da família.
“Tínhamos tios vivos, mas não nos deixaram ir para a casa deles. Nos mandaram para um educandário com outras crianças na mesma situação”, lembrou Roberto, em entrevista ao G1. Ele ficou no local por dois anos, um a menos que a irmã.
Uma lei federal que vigorou de 1949 a 1986 permitiu que o governo brasileiro segregasse filhos sadios de pacientes com hanseníase em locais conhecidos como preventórios, uma espécie de orfanato para crianças com pais vivos.
Em março de 2015, Roberto e Ana entraram na Justiça do Rio Grande do Sul pedindo à União uma indenização por danos morais, iniciando uma batalha judicial que passaria por três instâncias e levaria quase quatro anos.
No final de 2018, o Supremo Tribunal da Justiça (STJ) decidiu que o caso configura “um quadro de alienação parental forçada por políticas governamentais equivocadas” e que a União deverá indenizar os irmãos em R$ 50 mil cada. O prazo para pagamento se encerra em 15 de novembro. A decisão transitou em julgado e não cabe mais recurso.
Roberto e Ana tornaram-se, assim, os primeiros filhos segregados pela extinta política de hanseníase brasileira a ganhar na Justiça o direito a uma indenização da União.
Apesar de sadios, eles foram fichados pelo Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL). O órgão funcionou entre as décadas de 1940 a 1980 e era responsável por diagnosticar, rastrear e isolar os pacientes em leprosários – ou “hospital para leprosos” (os termos “lepra” e “leprosos” atualmente são proibido no Brasil por causa do estigma social associado às palavras).
A estimativa do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) é que cerca de 40 mil crianças tenham sido afastadas de pais internados compulsoriamente. O movimento defende que a política de combate à hanseníase do século 20 foi um dos maiores casos de alienação parental ocorrido no Brasil com o aval do Estado.
“Eu e minha irmã fomos enviados para o mesmo local, um preventório [educandário] em Palhoça [região metropolitana de Florianópolis]. Era um pavilhão muito grande. Lá, ficamos separados por uma parede”, conta Roberto. “Eu sabia que minha irmã estava atrás da parede, mas eu não podia ter contato com ela. Ficamos dois anos sem nos ver.”
“Sofremos muito lá. Eu tinha 6, 7 anos e era obrigado a trabalhar no preventório. Também lembro de um dia que me comportei mal na escola e me colocaram de castigo num prédio em construção que tinha perto. Me levaram para o último andar e me deixaram lá sozinho por um dia. São coisas que a gente não esquece”, conta Roberto. Ele diz que o processo é importante “não somente pelo valor, mas pela reparação do sofrimento”.
O advogado dos irmãos, Luis Henrique Monteiro, afirma: “A importância desse processo é que ele poderá servir de precedente para os outros casos de filhos segregados que lutam na Justiça por indenização”.
A historiadora Yara Nogueira Monteiro, especialista em história social da hanseníase no Brasil, explica que os educandários eram locais construídos especialmente para abrigar os filhos de pacientes de hanseníase que eram internados nos leprosários.
“Ali, ficavam as crianças que ninguém queria por causa do preconceito contra a hanseníase”, conta a pesquisadora.
De acordo com ela, o único dado oficial aponta que 14 mil crianças tenham vivido em preventórios entre as décadas de 1930 a 1980. “Mas sabemos que esses números são subestimados. Onde estão esses prontuários, por exemplo?”, questiona a historiadora.
Quanto aos leprosários – terrenos que reproduziam cidades, com cadeias, escolas e até cemitérios –, existiram 40 por todo o Brasil, todos construídos e administrados pelo governo. Isolados da sociedade, pacientes da doença eram presos ali; pessoas saudáveis eram proibidas de entrar.
Diagnosticar, separar e isolar
Entrada do leprosário de Bauru, no interior de SP, um dos maiores do Brasil. — Foto: Acervo Jaime Prado
Entre 1949 a 1986, a lei federal nº 610 permitiu ao Estado isolar compulsoriamente os pacientes de hanseníase nos leprosários e mandar aos preventórios os filhos desse pacientes – tanto os que nascessem nos leprosários como os filhos que a pessoa havia tido antes do diagnóstico.
“A política nacional de combate à hanseníase que vigorou até 1986 era organizada em três eixos: isolar os pacientes diagnosticados nos leprosários; segregar os filhos dos pacientes nos preventórios; e monitorar as pessoas com quem esses pacientes tiveram contato nos dispensários”, explica Luis Henrique Monteiro, o advogado dos irmãos.
Os dispensários funcionavam como um centro de saúde em que as pessoas citadas pelos pacientes eram obrigadas a se apresentar aos agentes de saúde. “Elas eram fichadas e tinham de passar por consultas nos dispensários de tempos em tempos”, descreve historiadora Yara Nogueira Monteiro.
A pesquisadora conta que os preventórios passaram a ser construídos primeiro no estado de São Paulo e com doações da sociedade civil:
“Um grupo de mulheres da elite paulista ligada à Igreja Católica começou a arrecadar dinheiro para se construir um lugar para os filhos dos pacientes de hanseníase. Listas de doadores eram frequentemente publicadas nos jornais de grande circulação”.
“Com tanta campanha, a sociedade acreditava que o preventório era o melhor local para essas crianças, mas hoje sabemos que elas sofreram todos os tipos de violência nesses lugares. Existiram os casos dos bebês que eram enviados para a adoção, mesmo tendo os pais vivos nos leprosários, assim como há histórias de crianças obrigadas a trabalhar em casas de família ou nos próprios preventórios”, relata Monteiro.
Os preventórios também serviam como argumento para que os pais hansenianos não fugissem dos leprosários. “Passava a falsa sensação que essas crianças estavam sendo bem cuidadas e que os pais sabiam onde elas estavam”, conta a pesquisadora.
Uma vez nos preventórios, os bebês e crianças passavam a ser controlados pelo departamento de profilaxia de hanseníase, o que durava até que chegassem aos 18 anos de idade. “Era o DPL que decidia quem podia sair do preventório, para onde iam etc.”
Quando Roberto e Ana saíram das instituições, eles foram enviados para a casa de um tio, no Rio Grande do Sul. Lá, descobriram que a mãe havia morrido dentro do leprosário, no mesmo ano em que foi internada. Já o pai permaneceu internado até 1975.
Uma geração de surdos
“De cada 10 filhos que nasciam no leprosário, 7 morriam. Os que sobreviviam eram mandados aos educandários. Lá, passaram fome, agressão física e violência sexual”, afirma o médico Getúlio Ferreira de Moraes, diretor da Casa de Saúde de Santa Izabel, de Betim (MG).
Fundada em 1921, a Colônia de Santa Izabel funcionou como leprosário até 1986 e foi uma das maiores do país. Somente em 1937, o local recebeu 3.886 pacientes internados compulsoriamente.
Há quatro anos, Moraes localiza e entrevista filhos que nasceram em Santa Izabel para dimensionar os danos sofridos por eles. O médico já entrevistou 150 desses filhos.
Um dos relatos que mais chamou sua atenção foi o de uma senhora violentada por três homens a partir dos 9 anos e durante toda a adolescência. “Eles [os agressores] davam cola de sapateiro para ela cheirar e a violentavam de todas as formas. Recentemente, eu consegui uma cirurgia plástica porque ela não tinha vagina, mas o que chamamos de cloaca: era tudo emendado”, conta ele.
O médico destaca que o pior caso de que tem conhecimento em Minas Gerais aconteceu com crianças que foram mandadas a um educandário em Araguari.
“Eu me assustei com os filhos de Araguari. Por causa dos tapas que os meninos recebiam nos ouvidos toda a hora, temos uma geração de homens surdos que cresceram ali.”
Recentemente, o médico localizou filhos que foram separados dos pais em 1986, ano que a lei que permitia a segregação deixou de existir. “Já existia [em 1986] tratamento para a hanseníase e todo mundo sabia que a doença não se pegava pelo simples contato, mas o Estado continuou separando e maltratando esses filhos”, diz.
Os relatos colhidos por Moraes estão sendo usados pelo Morhan como base para possíveis políticas públicas de assistência médica e social aos filhos separados. “A maioria dos entrevistados não sabe ler ou escrever. Quase todos têm depressão e não conseguiram construir laços afetivos para fora dos orfanatos”, conta o médico.
O que querem os filhos
Desde 2017, o Morhan move na Justiça uma Ação Civil Pública contra o Estado pedindo que o governo reconheça a responsabilidade na segregação e alienação dessas famílias e no isolamento compulsório dos pacientes, além de uma indenização aos filhos separados ainda vivos.
Além de uma indenização financeira – conseguida pela primeira vez pelos irmãos do Rio Grande do Sul – os filhos separados lutam na Justiça para que os leprosários ainda existentes no Brasil sejam transformados em museus sobre a hanseníase.
Hanseníase: Brasil é 2º país em notificações
O que é a hanseníase e os números altos de contágio no Brasil. — Foto: Arte/G1
Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil é o segundo país no mundo que mais registra novos casos de hanseníase. Para Moraes, contudo, “a sociedade rejeita tanto a doença, que considera que ela acabou.”
“Quase 30 mil pessoas adoecem por causa de hanseníase a cada ano no Brasil. Dessas, quase 3 mil são crianças. Eu conheço pacientes infantis que já estão com as mãos em garra”, afirma o médico.
“Mãos em garra” é um termo usado para descrever a fase aguda da doença, capaz de destruir as pontas dos dedos e outras extremidades do corpo, como cotovelo e nariz.
Fonte: G1 – Ciência e Saúde