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Assassinatos de mulheres sobem no 1º semestre no Brasil, mas agressões e estupros caem; especialistas apontam subnotificação durante pandemia

O Brasil teve um aumento de 2% no número de mulheres assassinadas no primeiro semestre deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado. Os casos de feminicídio também subiram. Em contrapartida, os registros de outros crimes relacionados à violência contra a mulher, como agressões e estupros, caíram no país. É o que mostra um levantamento exclusivo feito pelo G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.

Nos primeiros seis meses de 2020, 1.890 mulheres foram mortas de forma violenta em plena pandemia do novo coronavírus – um aumento de 2% em relação ao mesmo período de 2019.

O número de feminicídios, quando as mulheres são mortas pelo simples fato de serem mulheres, também teve uma leve alta. Houve 631 crimes de ódio motivados pela condição de gênero.

Já os casos de lesão corporal no contexto de violência doméstica caíram 11%, e os estupros e estupros de vulneráveis tiveram uma queda de 21% e 20%, respectivamente.

O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A alta nas mortes segue a tendência registrada em todo o país no primeiro semestre deste ano. O percentual de homens mortos, porém, é um pouco superior. Dados do Monitor da Violência apontam que os assassinatos cresceram 6% de janeiro a junho, interrompendo as quedas recordes de mortes violentas no Brasil nos últimos dois anos.

Chama a atenção que o aumento de mortes neste ano aconteceu mesmo durante a pandemia do novo coronavírus, que fez com que estados adotassem diversas medidas de isolamento social. Ou seja, houve alta na violência mesmo com menos pessoas nas ruas.

A queda nos registros de lesões corporais e estupros, por sua vez, impressiona, já que era esperada uma alta com o confinamento. Especialistas afirmam, porém, que se trata de uma subnotificação, isto é, menos denúncias foram feitas em razão das dificuldades impostas pela pandemia. Governos de estados como Acre e Sergipe reforçam que os números estão, de fato, subestimados.

Os dados revelam que:

  • o Brasil teve 1.890 homicídios dolosos de mulheres no primeiro semestre de 2020 (uma alta de 2% em relação ao mesmo período de 2019)
  • do total, 631 foram feminicídios, número também maior que o registrado no primeiro semestre do ano passado
  • 14 estados tiveram alta no número de homicídios de mulheres
  • 11 estados contabilizaram mais vítimas de feminicídios de um ano para o outro
  • Rondônia é o estado com a maior alta (255%) e o maior índice de homicídios de mulheres: 4,4 a cada 100 mil
  • Acre é o estado com a maior alta (167%) e a maior taxa de feminicídios: 1,8 a cada 100 mil
  • o país teve 119.546 casos de lesão corporal dolosa em decorrência de violência doméstica (11% a menos que no primeiro semestre de 2019)
  • houve o registro de 9.310 estupros (uma redução de 21% em um ano)
  • foram 13.379 estupros de vulnerável (uma queda de 20% no indicador de um ano para o outro)
  • Pará tem a maior alta de casos de lesão corporal (46%) e o Mato Grosso, a maior taxa (259 a cada 100 mil)
  • Rondônia é o único estado do país com alta no número de estupros

 

Brasil registra aumento de homicídios de mulheres no 1º semestre — Foto: Juliane Monteiro/G1

Brasil registra aumento de homicídios de mulheres no 1º semestre — Foto: Juliane Monteiro/G1

Pandemia e subnotificação

 

Segundo especialistas consultadas pelo G1, os registros das mortes e dos outros crimes não letais, como agressões e estupros, devem ser analisados de formas distintas. Isso porque as formas como esses registros são feitos diferem bastante.

Segundo a pesquisadora da Universidade de São Paulo Jackeline Romio, os registros de mortes são mais confiáveis porque passam por um “duplo registro”: são contabilizados nas delegacias e nos sistemas de segurança pública, bem como nos hospitais e nos dados de saúde.

“Por isso, ela é mais registrada que outros tipos de crime e acaba se tornando o próprio indicador de violência na sociedade”, diz Romio.

Valéria Scarance, promotora de Justiça especializada em gênero e enfrentamento à violência contra a mulher, concorda. “Não há subnotificação de morte de mulheres. Mortes são mortes, ainda que não registradas como feminicídio. Por isso, os índices de assassinatos de mulheres representam um importante indicador da evolução da violência de gênero no país”, diz.

Já as lesões corporais e os estupros dependem das denúncias das próprias mulheres.

“O problema da subnotificação é um problema grave para os crimes não letais, porque depende da iniciativa da vítima. E, muitas vezes, as pessoas sofrem a violência e preferem resolver o problema de outra maneira, e não por meio da via institucional”, diz Ana Paula Portella, socióloga e consultora, com doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco.

 

Assim, segundo as especialistas, a queda nos indicadores desses crimes não letais não quer dizer que houve menos violência contra a mulher durante o primeiro semestre, mas, sim, que houve muita subnotificação.

Uma das principais evidências está no fato de que os homicídios dolosos de mulheres cresceram no mesmo período.

“O homicídio é a ‘ponta’ da violência. Então, quando você vê que os homicídios aumentaram, espera-se que outros tipos de violência, que são o processo até essa morte, também tenham aumentado”, diz Jackeline Romio.

 

A pesquisadora afirma que são diversos fatores por trás da subnotificação.

“A gente está em um contexto de pandemia e fechamento parcial dos serviços públicos que resultam em uma barreira institucional para que a mulher consiga fazer essas queixas e denúncias. Tem a ver também com transporte, com o funcionamento das instituições e dos próprios fóruns e da Justiça”, afirma a pesquisadora.

 

“As instituições fecharam, mas as ocorrências continuam. Isso causa subnotificação e gera esse ‘delay’ [atraso, demora] entre o número oficial e a realidade vivida pelas mulheres”, diz Jackeline Romio, pesquisadora da USP.

“Este cenário atinge ainda mais gravemente as milhares de mulheres brasileiras em situação de violência doméstica, que muitas vezes se veem confinadas em suas casas com seus agressores e com ainda mais dificuldade em acessar os serviços de proteção e canais de denúncia da violência”, reforçam Isabela Sobral e Juliana Martins, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Para Scarance, o funcionamento dos serviços é essencial para entender os indicadores. “Por que o atendimento é tão importante? Em regra, as mulheres sofrem violências mais severas quando não rompem o silêncio ou não conseguem atendimento adequado e desistem. Assim, se há uma rede estruturada que permite à mulher falar e ser acolhida, as mortes diminuem”, diz.

Romio afirma, porém, que, de forma geral, as instituições públicas não conseguiram adaptar os serviços às novas realidades de pandemia e isolamento social, que passaram a exigir atendimentos digitais.

E, mesmo que os serviços tenham oferecido atendimento digital, Romio lembra que o acesso à internet não é universal no país. “Isso prejudica ainda mais as mulheres pobres, negras, de periferias e regiões afastadas”, diz.

Além disso, as especialistas afirmam que a quarentena conseguiu isolar ainda mais as mulheres em situação vulnerável.

“O agressor está em casa, então é muito difícil você procurar ajuda quando o cara que agride está do seu lado. Então, se ele desconfiar que você está procurando ajuda, é possível que ele se torne mais violento e que você venha sofrer novas agressões”, diz Portella

“Eu arriscaria dizer que essa redução pode se dever principalmente a essa dificuldade de chegar às instituições de apoio, aos locais onde as mulheres poderiam conseguir ajuda”, diz Ana Paula Portella.

 

Por isso, segundo Romio, “o subregistro é uma realidade”. “Se tem todo esse diagnóstico de dificuldades e aumento de óbitos, tem evidência de que esses crimes foram subnotificados pela falta de denúncias e pelo impedimento institucional”, afirma.

“Estratégias têm que ser pensadas para que isso possa acontecer de forma democrática, não só para mulheres de classe média e alta, mas também para mulheres pobres, sem internet.”

Casos de violência contra a mulher tiveram queda durante a pandemia — Foto: Juliane Monteiro/G1

Casos de violência contra a mulher tiveram queda durante a pandemia — Foto: Juliane Monteiro/G1

Mesmo com queda, números são altos

 

O levantamento do G1 aponta que, mesmo com menos registros que no ano passado, o número de mulheres vítimas de estupros e de agressões em casa é alto.

Foram 119.546 registros de lesão corporal em contexto de violência doméstica no primeiro semestre deste ano. A queda em relação ao mesmo período do ano passado é de 11%, mas ainda são, em média, 664 mulheres agredidas por seus companheiros dentro de casa por dia.

O mesmo acontece com os casos de estupro e estupro de vulnerável. A queda dos registros de estupro foi de 21%, já que o número passou de 11.812 no ano passado para 9.310 neste ano. A redução de estupro de vulnerável foi de 20% (passou de 16.805 para 13.379).

Mesmo assim, foram registrados 126 casos de estupro e estupro de vulnerável, em média, por dia no primeiro semestre deste ano.

“Sabemos que uma parte significativa dos estupros ocorre no ambiente doméstico e diante da suspensão de diversas atividades, como as escolares, por exemplo, o período de convivência entre autores e vítimas aumentou. Além disso, a presença constante dos autores pode constranger a comunicação do crime às autoridades”, dizem Giane Silvestre, Sofia de Carvalho e Debora Piccirillo, do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Mesmo com queda, número de casos de violência contra a mulher é expressivo — Foto: Alexas_Fotos/Creative Commons

Mesmo com queda, número de casos de violência contra a mulher é expressivo — Foto: Alexas_Fotos/Creative Commons

Violências desiguais

 

As especialistas também destacam o fato de que os indicadores não seguem as mesmas tendências de altas e baixas de forma homogênea em todo o país.

Mesmo com queda nacional nos registros de lesão corporal, por exemplo, seis estados tiveram alta de casos no primeiro semestre. A mais acentuada foi a do Pará, que teve 1.827 casos em 2019 e 2.674 neste ano, ou seja, 847 registros a mais (46,4%).

A Secretaria de Segurança Pública do estado diz que “houve aumento da violência doméstica em todo o país, em especial pelo isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19”, mas que mantém canais para atender as mulheres vítimas de violência, como o aplicativo SOS Maria da Penha.

A pasta diz que ampliou os canais de denúncias anônimas e que aumentou o número de servidores no Centro Integrado de Operações (CIOP) para atender as ocorrências de emergência com maior rapidez.

Os indicadores também não são homogêneos nos outros crimes.

Apesar de a média nacional apontar uma alta de 2% nos homicídios de mulheres no primeiro semestre deste ano, por exemplo, 13 estados tiveram queda. A maior foi registrada em Roraima, estado que teve 18 casos no primeiro semestre de 2019 e apenas seis casos neste ano (ou seja, uma queda de 67%).

Já os outros 14 estados tiveram alta em um nível suficiente para fazer o país registrar um aumento.

Centro de Referência para Mulheres Vítimas de Violência em Rondônia; estado é destaque negativo no levantamento — Foto: Jheniffer Núbia

Centro de Referência para Mulheres Vítimas de Violência em Rondônia; estado é destaque negativo no levantamento — Foto: Jheniffer Núbia

Os dados de Rondônia são os que chamam mais atenção: 11 mulheres foram assassinadas nos primeiros seis meses do ano passado, ante 39 em 2020, em uma alta de mais de 250%.

O estado aparece também com a maior taxa de mortes de mulheres do país — ou seja, é a unidade da federação que, proporcionalmente, tem mais mulheres assassinadas. Para ter uma ideia, a taxa nacional é de 1,7 mulher morta a cada 100 mil mulheres. Já a taxa de Rondônia chega a 4,4 a cada 100 mil mulheres.

Uma dessas vítimas foi Anita Lopes, de 42 anos. Ela foi morta pelo marido, José de Souza, de 67 anos, em Ouro Preto do Oeste (RO), no dia 7 de janeiro.

Segundo o delegado Niki Locatelli, Anita queria se separar do marido, mas ele não aceitava o fim do casamento. Durante a madrugada, José pegou uma faca e golpeou a esposa no pescoço. Ela morreu na hora. Na sequência, ele se suicidou.

Anita e José estavam juntos havia 13 anos, segundo delegado — Foto: Reprodução

Anita e José estavam juntos havia 13 anos, segundo delegado — Foto: Reprodução

Apenas três dias depois, um caso semelhante aconteceu em Porto Velho com as irmãs Márcia e Carmelucia. Elas foram assassinadas pelo ex-marido de Márcia, Antônio Pereira de Carvalho, de 68 anos, também por causa do fim do relacionamento.

O crime aconteceu em um escritório de advocacia, onde Márcia e Antônio iam assinar o divórcio. Carmelucia também estava no local, acompanhando a irmã. O homem matou a mulher e a cunhada a tiros e, depois, se matou.

Rondônia também se destaca no levantamento nacional sobre estupro, pois foi o único estado do país a ter alta nos registros. Foram 136 denúncias no ano passado, contra 141 neste ano.

Em nota, o governo de Rondônia diz que “o avanço de casos aconteceu em todo o mundo”. “A convivência intensa, a tensão do momento e o próprio isolamento social, longe de parentes e amigos, são fatores decisivos para que o número de casos de violência doméstica tenham aumentado/piorado.”

O governo diz, porém, que tem promovido campanhas educativas de incentivo a denúncias via 180 e Delegacia Estadual da Mulher.

Agente penitenciário mata esposa e cunhada a tiros e comete suicídio ao assinar divórcio

Agente penitenciário mata esposa e cunhada a tiros e comete suicídio ao assinar divórcio

Alta nos feminicídios

 

A mesma diferença regional acontece com os feminicídios: 15 estados do país tiveram queda e um se manteve no mesmo nível do primeiro semestre do ano passado. Já os outros 11 tiveram alta, puxando a média nacional para o aumento de 1%.

Desde 9 de março de 2015, a legislação prevê penalidades mais graves para homicídios que se encaixam na definição de feminicídio – ou seja, que envolvam “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Os casos mais comuns desses assassinatos ocorrem por motivos como a separação.

A maior alta aconteceu no Acre. O número de feminicídios subiu de três no ano passado para oito neste ano, um aumento de quase 170%.

O estado também tem a maior taxa do país para mulheres mortas por feminicídio: 1,8 a cada 100 mil mulheres. É o triplo da taxa nacional, que é de 0,6 a cada 100 mil mulheres.

A chilena Karina Constanza Bobadilha Chat, de 22 anos, morta com mais de 20 facadas em fevereiro deste ano — Foto: Reprodução

A chilena Karina Constanza Bobadilha Chat, de 22 anos, morta com mais de 20 facadas em fevereiro deste ano — Foto: Reprodução

Um destes casos é o da chilena Karina Constanza Bobadilla Chat, de 22 anos, morta com mais de 20 facadas no dia 1º de fevereiro em Rio Branco. O crime ocorreu porque a vítima não aceitava um relacionamento com o suspeito. O homem foi indiciado pelo crime.

Outro caso chocou o estado. Em março deste ano, durante uma discussão, a jovem Katiane de Lima, de 23 anos, foi calada de forma brutal pelo companheiro com pelo menos três facadas, no pescoço, no braço e nas costelas. Ela estava com o filho no colo na hora que foi assassinada.

Katiane de Lima, morta pelo marido com o filho no colo — Foto: Arquivo pessoal

Katiane de Lima, morta pelo marido com o filho no colo — Foto: Arquivo pessoal

O Acre também chama a atenção porque, mesmo sendo o estado com a maior alta de feminicídios, foi o que teve a maior queda nos registros de lesões corporais em contexto de violência doméstica: 38,6%. Ou seja, segundo as especialistas, isso aponta que o estado teve uma alta subnotificação desses casos, já que eles teoricamente deviam seguir a mesma tendência das mortes.

O governo do estado afirma que, “durante o período de pandemia, as mulheres que já viviam relacionamentos abusivos ficaram mais tempo sozinhas com seu algoz, e tensões diárias, como insegurança financeira, medo de contrair o vírus, desemprego e uso de bebidas alcoólicas são alguns dos fatores que agravaram as reações violentas nos lares”.

O governo admite ainda que “a redução dos serviços da rede de atendimento presencial e a falta de informação dos canais de denúncia também são fatores que fizeram com que as vítimas fossem impedidas de pedir socorro”.

Mas ressalta que, desde 2019, faz ações em conjunto com a Justiça para proteger os direitos da mulher vítima de violência doméstica, como o aplicativo Botão da Vida, vinculado à Patrulha Maria da Penha, e a realização de campanhas informativas e educativas para divulgar a legislação e os canais de denúncia.

Campanha em Sergipe alerta para subnotificação de denúncias de violência doméstica — Foto: SSP/Reprodução

Campanha em Sergipe alerta para subnotificação de denúncias de violência doméstica — Foto: SSP/Reprodução

‘Não acreditamos em diminuição repentina’

 

Outro estado que também reconheceu a existência da subnotificação foi Sergipe. Os registros de estupro de vulnerável caíram 46,4% no estado no primeiro semestre deste ano, a maior diminuição do país.

Questionada sobre os indicadores, a Secretaria de Segurança Pública diz que “a redução nos registros de casos de crimes contra crianças e adolescentes não significa que tenha ocorrido uma queda na incidência dessas práticas delituosas”.

A pasta afirma que a queda dos indicadores “é uma preocupação” e que isso “ocorre em razão da subnotificação”. “As denúncias não estão chegando nas delegacias. (…) Não acreditamos numa diminuição repentina e consistente dos casos.”

A secretaria ainda cita alguns fatores que podem estar por trás da subnotificação. “Por conta das crianças estarem mais isoladas em suas residências, por não estarem ainda nas escolas, tudo isso faz com que exista essa redução de números. Então, pedimos que a sociedade se mobilize e, em caso de suspeita de algum crime ou de alguma violência contra a criança ou o adolescente, que denuncie à polícia e nos canais oficiais”, diz o governo de Sergipe.

Fonte: G1 Monitor da Violência