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Como ‘Onda diferente’, com Anitta e Ludmilla, revela novas brigas sobre o que é compor uma música

De quem é a música? A pergunta envolveu Anitta e Ludmilla por causa de “Onda diferente”, mas vai além dessa faixa e da relação entre as duas. O caso traz à tona novas brigas sobre o que é ser compositor de uma música. O jeito de fazer hits pop muda e isso traz dúvidas sobre autoria.

Ouça acima o podcast G1 Ouviu e entenda o caso de ‘Onda diferente’ e o debate sobre autoria no Brasil.

Produtores de hits atuais reclamam que o Brasil está defasado: o som é moderno, mas as regras são do tempo do vinil. O negócio hoje é fazer parcerias e amarrar com boas bases eletrônicas. Para criar, ninguém solta a mão de ninguém. Mas para dividir os créditos… é cada um por si.

Duas palavrinhas parecidas geram disputas: os “feats” (parcerias) e os “beats” (batidas, bases das músicas). A polêmica sobre “Onda diferente” começou justamente com a dúvida sobre onde produtores e parceiros se encaixam nos direitos autorais.

O que aconteceu com ‘Onda diferente’?

  1. A polêmica começou quando a Ivete Sangalo cantou a música no Rock in Rio.
  2. Ludmilla comemorou a presença da música que ela compôs. Fãs de Anitta apontaram que ela também estava na lista de autoras no Spotify, e criticaram Ludmilla.
  3. Em um vídeo, Ludmilla revelou que escreveu “Onda diferente”, mas sua gravadora, não quis lançar. Só depois que Anitta conheceu a música e propôs uma parceria a gravadora aceitou.
  4. Anitta envolveu o produtor Papatinho e o rapper Snoop Dogg, que cantou um trecho em inglês. Ele exigiu 50% dos créditos de autoria, e foi combinado que os outros 50% ficariam com Ludmilla.
  5. Por isso, Ludmilla e Snoop Dogg foram creditados como compositores e intérpretes. Anitta e Papatinho ficaram só como intérpretes.
  6. Depois da polêmica, Anitta pediu calma aos fãs, disse que a autora era a colega, e a lista de autores no Spotify voltou a ter só Ludmilla e Snoop – mas a polêmica continuou.

A controvérsia toca em vários temas: a forma como Ludmilla foi subestimada pela gravadora, a questão racial e fofocas sobre a relação pessoal delas. Já a origem da disputa seguiu com solução duvidosa.

Por que Anitta, que também faz “feat” na música e ajudou na produção, não é considerada autora, assim como Snoop Dogg? E porque o Papatinho, que fez novos beats e trechos, entrou como intérprete e não como autor também?

‘Beats’ e ‘feats’ no Brasil e no mundo

Outro desabafo nas redes amplificou a polêmica nos bastidores. Ele repercutiu entre produtores, os profissionais que coordenam todos os elementos da gravação das músicas, inclusive os beats. Pedro Dash, ex-tecladista da banda Cine e atual sócio da produtora Head Music questionou:

“O mundo mudou, e Papato e Anitta são autores, sim. Beat é autoral e se você não sabe, precisa se atualizar. Tem uns brasileiros que são foda. Querem produção gringa, clipe gringo, referência gringa. Mas na hora de dividir o autoral, é o único momento que querem usar o Brasil de exemplo”.

Ao G1, ele argumenta: “Anitta e Papatinho ajudaram a transformar o que antes era uma ideia em algo real e muito maior do que era antes. Eles trabalharam no instrumental, na direção da música em uma forma que hoje em dia no mundo inteiro se considera autoral”.

Nos EUA e no resto da América Latina, quem produz uma base ou traz novo trecho para um “feat” tem crédito de autoria, ele afirma. “O único lugar em que não se pratica isso é o Brasil”, diz Pedro.

Enxuga a lista

Pedro cita “Mi Gente”, megahit de J. Balvin, conhecido pelo riff eletrônico criado em estúdio. O produtor WIlly WIlliam é listado entre os 6 autores. E há hits com ainda mais autores, incluindo produtores, como como “Nice for what”, de Drake (22 autores), e Sicko Mode, de Travis Scott (30!).

No Brasil, as listas até crescem com os “songcamps”, ou reuniões de autores – vide os 8 pais de “Jenifer”. Mesmo assim, há uma pressão de editoras e cantores para enxugar os créditos, ainda mais se incluir produtores, diz Pedro. “Onda diferente”, que poderia ter 4 autores mas ficou com 2, é um exemplo.

Sentou, sorriu, o ‘feat’ dividiu

O produtor Zegon, do duo Tropkillaz, conta que, no mercado latino e dos EUA, os artistas que fazem “feat”, mesmo quando entram depois da música estruturada, também costumam entrar como autores.

Uma Beyoncé da vida não entra no estúdio sem os seus 20% de autoria. “Normalmente o ‘feat’ já morde uma parte. É comum ele pegar uma composição pronta, trocar duas três palavras e entrar. A Rihanna nunca vai entrar na música sem ser coautora”, diz Zegon.

Dupla do Tropkillaz comanda show no palco Axe do Lollapalooza Brasil 2018 — Foto: Fábio Tito/G1Dupla do Tropkillaz comanda show no palco Axe do Lollapalooza Brasil 2018 — Foto: Fábio Tito/G1

Dupla do Tropkillaz comanda show no palco Axe do Lollapalooza Brasil 2018 — Foto: Fábio Tito/G1

A regra é mais ou menos clara

Especialistas em direitos autorais concordam, em geral, com o pleito dos produtores. Mas, como a definição de autoria musical no Brasil é aberta, nada garante que eles serão reconhecidos. É o que explica Daniel Campello, advogado e dono da ORB Music.

“Os beats são, na minha visão, parte da melodia. É a base da música eletrônica, rap, funk”. Ele faz uma ressalva: “Não adianta ter só um beat comum, só percussivo, sem nenhum aspecto de criatividade.”

Números por trás da treta

Daniel fala da diferença entre obra (a composição, a criação) e fonograma (gravação daquilo que foi criado).

  • Os direitos pela obra, dos autores, são definidos de forma livre: eles registram quem é autor e qual é a porcentagem de cada um. No total, ficam com 2/3 do lucro com execuções públicas de uma música no Brasil.
  • Já os intérpretes ficam com 1/3 das execuções e dividem um percentual fixo entre músicos principais (41,7%,), gravadora ou selo independente (41,7%) e músicos acompanhantes e arranjadores (16,6%).

Isso explica melhor o caso de “Onda diferente”. Como a definição de autor é livre, a tal combinação de 50% para a Ludmilla e 50% para o Snoop é permitida. Podiam ter incluído a Anitta e o Papatinho, mas valeu o combinado.

Mas também fica claro o peso financeiro de estar na lista de compositores, já que eles ficam com a maior fatia da renda da execução pública.

Quando creditados como intérpretes, eles dividem a fatia de 1/3, e dentro dela ficam com os 41,7% dos artistas principais (foi o caso de Anitta e Papatinho). Nos piores casos, os produtores costumam ser jogados lá para a divisão menor de acompanhantes, com percentual menor de 16,6%.

Anitta e Ludmilla no MTV Miaw — Foto: Cleiby Trevisan/DivulgaçãoAnitta e Ludmilla no MTV Miaw — Foto: Cleiby Trevisan/Divulgação

Anitta e Ludmilla no MTV Miaw — Foto: Cleiby Trevisan/Divulgação

‘Onda diferente’ seria diferente no mundo

A inclusão de Anitta e Papatinho como intérpretes principais, e não só músicos acompanhantes, pode ter ajudado a compensar e abrir mão da autoria. Mas, no mercado global, seria normal serem autores também. Anitta, Papatinho e Ludmilla não quiseram comentar mais o caso ao G1.

Comparada com a execução pública (em TV, rádio, casas de shows, e outros ambientes coletivos), a renda de serviços de streaming dá uma fatia maior aos intérpretes. Mas o que cada um recebe depende do contrato com gravadoras e agregadoras – empresas que intermeiam o pagamento das plataformas.

Em 2018, foi distribuído no total R$ 1,1 bilhão por execuções públicas de músicas no Brasil, através do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). O valor total distribuído pelos serviços de streaming não é divulgado.

O produtor Papatinho — Foto: Divulgação/Fernando SchlaepferO produtor Papatinho — Foto: Divulgação/Fernando Schlaepfer

O produtor Papatinho — Foto: Divulgação/Fernando Schlaepfer

Quem mexeu no meu bolo?

Mariana Valente, diretora do InternetLab e autora do livro “A construção do direito autoral no Brasil”, lembra que sempre houve resistência no Brasil a novos personagens que apareçam pedindo uma fatia dos direitos autorais.

Isso desde a época das editoras de partitura musicais no papel. “Quando surge o rádio e a música gravada, o intérprete começa a ter um papel maior e eles começam a disputar ter um direito também. E teve muita resistência dos compositores de dividir esse bolo.”

Para a Mariana, essa peleja vai ser decidida no campo cultural mesmo. E como o registro de autoria é aberto, vai ser resolvida na prática, não com novas regras.

As parcerias de cantores de vários estilos amarrados pela produção eletrônica são o caminho do pop atual. Então, não é só “Onda diferente”: pode saber que cada hit com um monte de colaboradores foi também trilha sonora de uma disputa bombante por partes da autoria.

Fonte: G1 – Pop & Arte