Dia de Consciência: por que cada vez mais brasileiros estão se autodeclarando negros?
Na certidão de nascimento da paulistana Caroline Borges da Cunha, de 28 anos, está escrito: “branca”. E era assim, como uma pessoa branca, que ela se viu durante boa parte da sua vida. Raça e cor de pele não eram assuntos discutidos pela sua família, nem mesmo quando ela ouvia xingamentos na escola por conta do seu cabelo crespo; nem mesmo quando, aos seis anos, ela começou a alisar os cabelos.
“Eu passava pelo processo de dor por alisar, mas eu me sentia bonita”, conta Caroline. “Mas nunca foi algo que foi discutido. Por que a gente alisa o cabelo, por que não aceito, por que na minha família tem pessoas de pele mais escura que não se consideram negras. Nunca foi dito.”
O diálogo sobre raça também não era uma questão na família do baiano Joely Nunes, de 23 anos. Ele se lembra de ser identificado como “moreno” ou “mestiço” desde muito cedo. “As pessoas mais velhas olhavam para mim, passavam a mão na minha pele e falavam: ‘Nossa, que pele linda, moreno da cor do pecado’. Mas nunca era uma pessoa negra, sabe?”
Já a sergipana Dida Dias, de 63 anos, não se considerava branca, nem morena, nem nada. Ela apenas “não pensava a respeito”. “Eu não percebia que usava lenço [na cabeça] porque eu queria esconder o cabelo, por exemplo. Não era uma negação, era muito mais uma não compreensão do que estava acontecendo”, diz.
Hoje, anos depois, os três se declaram negros. Mas o que aconteceu para que eles mudassem essa autodeclaração? E o que mudou após esse processo? O G1 conversou com eles para saber (assista ao vídeo acima).
A paulistana Caroline Borges da Cunha, de 28 anos, começou a alisar o cabelo aos seis anos. Foi apenas quando ela assumiu os fios crespos que começou a se questionar sobre a sua identidade racial — Foto: Celso Tavares/G1
Reflexão: como eu me vejo e como os outros me veem
Foi apenas quando Caroline já estava na faculdade de enfermagem que ela começou a se questionar sobre sua própria identidade racial. Um dos pontos cruciais foi ter decidido parar de alisar o cabelo e usar os fios crespos, o que intensificou comentários sobre a sua aparência e alterou a forma como as pessoas a viam.
O primeiro momento chave foi durante um estágio em um hospital. Caroline sentia que era perseguida por outros profissionais, mas achava que isso acontecia porque eles não gostavam dela.
“Tinha uma técnica de enfermagem, negra, e ela falou assim: ‘Sabe por que as pessoas te tratam mal?’ Eu falei: ‘Não’. Ela falou: ‘Você não sabe, mas eu sei. Você é negra’. E eu: ‘Oxe, desde quando?’ E esse foi o primeiro momento que eu comecei a refletir”, conta Caroline.
Em outro momento, logo após assumir seu cabelo crespo, uma colega a confrontou sobre a sua raça. “Ela virou pra mim e falou assim: ‘Carol, você não se acha negra, né? Porque você não é negra, você é não branca’. Eu fiquei muito chateada. Como assim não branca?”
Já para Joely e Dida, as mudanças que desencadearam as reflexões não foram estéticas, mas, sim, de endereço. Joely deixou a Ilha de Itaparica, na Bahia, para fazer faculdade em São Paulo, e Dida deixou Santos, no litoral paulista, para morar em Piracicaba, no interior. A partir daí, os dois passaram a ser alvos de comportamentos preconceituosos que os levaram a questionar a própria autopercepção racial.
“Aqui em São Paulo foi bem duro, direto e transparente. Eu comecei a perceber todos os olhares estranhos, os seguranças me seguindo dentro da loja, as pessoas guardando bolsa quando eu me aproximava. Foi aqui que tudo isso aconteceu e eu me questionei”, conta Joely.
Para Dida, o que ela chama de “processo de enegrecimento” foi longo e marcado por microagressões. “Por exemplo, eu estava na minha casa limpando e tocaram a campainha. Quando me viram, perguntaram se a patroa estava. Isso era meio comum, aconteceu várias vezes”, diz. “E [eu entendi] que isso acontecia comigo não só por uma questão econômica, da minha classe social, e sim também por questão de raça.”
O baiano Joely Nunes, de 23 anos, começou a se questionar sobre a sua raça quando sofreu episódios de racismo ao se mudar para a cidade de São Paulo — Foto: Marcelo Brandt/G1
Dilemas: nem preto nem branco?
Além de longo, o processo entre o branco e o negro foi marcado por dilemas. “Se você está entre brancos, você não é branco. Se está entre pretos, você não é preto. Você fica ali no meio termo”, conta Caroline.
“Hoje eu me autodeclaro negra. Negra de pele clara. Eu compreendo que o fato de eu ter a pele clara, que eu tenho mais passabilidade. Eu consigo me ‘camuflar’, eu sou muito mais aceita [que negros de pele escura]. Aceita não sei se é a palavra correta. Acho que tolerada”, diz Caroline.
Joely também afirma que se questionava sempre e que não tinha certeza se poderia (ou queria) se autodeclarar negro.
“[Tem] toda a mestiçagem, toda essa mistura de raças. E essa dificuldade de aceitar [é] porque a pessoa negra é colocada numa posição completamente ruim na sociedade. Você não quer ser aquilo, você não quer se colocar naquele lugar, então tem uma negação que você passa para assumir isso”, afirma Joely
Autoestima: orgulho da minha história
A partir dos questionamentos, os três passaram a estudar sobre identidade racial no Brasil, bem como a participar de grupos que discutiam negritude e preconceito. Com os estudos, as reflexões e o compartilhamento de experiência com outras pessoas que passaram por situações parecidas, mudaram suas percepções e passaram a se declarar negros.
A sergipana Dida Dias, de 63 anos, já tinha 30 anos quando passou a se autodeclarar como uma mulher negra — Foto: Fabio Tito/G1
Desde então, os três afirmam que passaram por uma transformação de autoestima, de autoconhecimento e de revisão das suas próprias histórias.
“O que mudou? Eu me senti mais segura de mim. Acho que a minha autoestima… Engraçado, né, parece que a autoestima melhorou porque eu passei a me ver”, conta Caroline.
Joely afirma ainda que a autodeclaração o ajudou a lidar com possíveis situações de preconceito. “Se assumir como pessoa negra é muito importante principalmente por você. Porque senão você vai sofrer várias coisas que você não vai fazer ideia de onde elas vêm e porque elas vêm para você. Quando você entende isso, você começa a se blindar e a se cuidar.”
Esse autocuidado é um dos pontos essenciais para Dida.
“É importante que as pessoas conheçam a sua história. Aliás, é importante que o Brasil inteiro conheça a sua história pra que mais pessoas possam se identificar como negras. É fundamental isso pra gente, porque aí a gente vai se orgulhar. O Brasil vai se orgulhar da sua história e vai ser bom pro Brasil inteiro”, ressalta.
Negros em alta: políticas de governo
Dados oficiais do país apontam que Caroline, Joely e Dida não estão sozinhos. Entre 2012 e 2018, o número de brasileiros que se autodeclaram pretos aumentou em quase 5 milhões, e o de pardos, mais de 7 milhões, segundo dados da Pnad Contínua, do IBGE.
Ou seja, em seis anos, o Brasil “ganhou” quase 12 milhões de negros, já que, segundo a classificação do IBGE, negros são todos que se autodeclaram como pretos e pardos.
Número de brancos caiu e de negros (pretos e pardos) cresce nos últimos anos no país, segundo o IBGE — Foto: Juliane Monteiro/G1
Ao mesmo tempo, o número de brasileiros que se autodeclaram brancos caiu em quase 2,5 milhões de pessoas. Como consequência, os negros passaram de 53,1% da população do país para 56,4% no período.
Segundo a pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Fernanda Lira Goes, os dados não mostram se nasceu ou morreu mais gente branca. É uma outra perspectiva de análise. “O que aconteceu não é diminuição de pessoas brancas no Brasil, é o aumento de pessoas se declarando pardas e pretas. É o aumento de identificação, informação, o aumento de consciência”, explica a pesquisadora.
Fernanda ressalta que essa identificação é recente e diz que os debates sobre questões raciais estão mais qualificados.
“A identificação aumentou e a questão racial no Brasil tem sido levada nos últimos 15 anos de forma mais acessível (..). Isso significa que tem muita política ainda pra ser avaliada, para ser desenhada e acompanhada, mas é um trabalho de continuidade.”
Fonte: G1 – São Paulo