Ministra do TST, ex-doméstica, lembra trajetória: ‘Acreditava que daria certo’
O gabinete de 70 metros quadrados com vista privilegiada do Lago Paranoá em nada lembra a casa simples das fotos que decoram a mesa da ministra do Tribunal Superior do Trabalho Delaíde Alves Miranda Arantes, de 62 anos. As imagens são um registro da trajetória da magistrada, que aos 14 anos deixou a zona rural de Pontalina, no interior de Goiás, e passou a trabalhar como empregada doméstica na cidade para poder estudar.
A decisão partiu dela mesma, que até então ajudava os pais no trato com as pequenas lavouras de feijão, arroz e milho. Por dois anos Delaíde se dividiu entre os cadernos e o escovão de aço da residência de uma professora e um contador em troca de menos de um salário mínimo.
“[Era] mais um suporte para os estudos. Papai sempre teve dificuldade financeira”, lembra. “Eu não fazia o serviço todo da casa, ela [a patroa] também fazia algum serviço. Dava para conciliar com os estudos. Eu estudava à noite. Só tenho lembrança boa desse período.”
A paixão pelo direito já se desenhava naquela época. Delaíde acompanhava as sessões do Tribunal do Júri e lembra que se sentia fascinada com as discussões. “[Eu gostava de ouvir] Os argumentos. O que é mais interessante é que ambos expõem os fatos como se tivessem razão. É muito instigante essa versatilidade que o direito tem”, diz.
Pouco tempo depois, a mãe de Delaíde conseguiu emprego para ela de recepcionista do consultório de um médico casado com uma prima dela. Foi com a ajuda dele que ela conseguiu uma vaga para fazer o segundo grau em Goiânia. O ensino oferecido era profissionalizante, e ela optou por cursar contabilidade.
Em troca de moradia e alimentação, a ministra voltou a exercer a atividade de doméstica, mas sem receber salário. Depois, trabalhou em um escritório de advocacia e em uma revendedora de tratores e assim conseguiu dinheiro para dividir uma casa com uma prima. As experiências a fizeram confirmar a vocação pelo direito.
“Era uma saudade, tinha dia que dava saudade de voltar [para a casa dos pais]. [Mas] Acreditava que daria certo. Se tem uma coisa que é minha é a persistência. Não vai dar certo não existe no meu dicionário”, lembra.
Delaíde passou para direito aos 23 anos, em uma faculdade particular. Até se formar, quatro anos depois, ela trabalhava de dia e estudava à noite. Meses antes de colar grau, pediu demissão e começou a estagiar em um escritório de advocacia trabalhista. A indicação veio de um professor, que fez uma consulta aos alunos em sala de aula.
A vivência que tinha, os casos que pegou e a possibilidade de conciliar o trabalho com a criação das duas filhas fizeram com que ela tomasse gosto pela área. Dois anos depois, ela virou sócia do escritório. Ao todo, Delaíde passou 30 anos advogando.
“Se tivesse que escolher de novo, não seria diferente. A relação capital-trabalho é uma relação muito conflituosa, mas fascinante ao mesmo tempo”, diz. “Eu diria que em cada fase da carreira a gente lida com situações diferentes. Advoguei muito para sindicatos, aí veio uma outra fase em que também advoguei para empresas. Essa noção de advogar para trabalhadores e também para empresas é muito boa.”
(Foto: Delaíde Miranda Arantes/Arquivo Pessoal)
A indicação para o cargo no TST foi feita pela Ordem dos Advogados do Brasil no começo de 2011. Desde então, ela já julgou mais de 26 mil processos. Outros 13 mil estão para análise, e a meta é atender a pelo menos mil por mês.
Para Delaíde, as vivências que teve na juventude a ajudam a ter uma “sensibilidade maior” durante as audiências. “Amplia muito a minha visão. Discutimos muito a neutralidade do magistrado, porque para julgar ele precisa ser justo. Mas, na verdade, a gente traz toda a experiência que a gente tem de vida. E essa convivência social é importante. O judiciário não está longe da sociedade. São desafios bem diferentes, mas que eu posso aproveitar a minha experiência prática.”
Entre as principais bandeiras defendidas pela ministra estão o combate à exploração infantil e a garantia de direitos àquelas pessoas que, como ela um dia, se dedicam a cuidar da casa dos outros. A magistrada também defende maior reconhecimento dos trabalhadores rurais e igualdade entre homens e mulheres.
“Olhando para trás, eu, felizmente, não fui explorada, mas não defendo o trabalho antes dos 18 anos. E se tem um trabalho que é muito invisível é o trabalho doméstico”, declarou. “Eu também tenho uma preocupação grande com a execução trabalhista. De todos os processos que chegam ao fim, apenas 30% se efetivam. E isso é importante tanto para o trabalhador quanto para a empresa. É fundamental que se tenha a garantia de que o trabalhador vá receber seu crédito.”
A preocupação é tão grande que Delaíce conta que é impossível não levar trabalho para casa. Casada com o ex-deputado federal Aldo Arantes (PCdoB-GO) e mãe de duas filhas, de 33 anos e 31 anos, ela sonha em conseguir conciliar as atividades com os cuidados aos três netos.
Ela conta que também almeja fazer um mestrado e aprimorar o inglês. Além disso, destaca o gosto pela leitura. Os escritores preferidos são Machado de Assis, José de Alencar e Érico Verissimo, afirma.
PEC das domésticas
Mesmo orgulhosa da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que equipara direitos de domésticos a de outros trabalhadores, Delaíde diz acreditar que ainda é preciso mais. A medida passou a garantir salário-mínimo, férias proporcionais, horas extras, adicional e FGTS às domésticas.
“O serviço é prestado a uma pessoa física, que de forma direta não visa lucro. Eu defendo a igualdade. Estamos em uma transição para a igualdade plena dos direitos, mas ainda tem um convencionalismo em certos setores da sociedade de que o trabalho braçal não precisa de tanta proteção. Veja, são 7 milhões de trabalhadores domésticos e mais de 60% deles são mulheres negras”, disse. “[A igualdade] é o meu sonho e o que considero justo.”
Uma das 27 ministras do TST, a magistrada conta que tem duas empregadas e que as incentiva a estudar. A do apartamento em Goiânia é formada em história, e a de Brasília está concluindo o segundo grau.
“Elas são fundamentais para mim, porque, se não cumprirem o trabalho delas, vou ter que ir para casa para fazer. É por isso que eu nunca consegui entender porque elas não teriam FGTS, por exemplo, antes da emenda. Na minha casa, elas têm os mesmos direitos que todo trabalhador tem. O volume de serviço é grande, e eu tenho nelas inteira confiança”, disse.
(G1)