Pandemia faz crescer a evasão escolar e põe em risco o futuro de alunos mais pobres: ‘Desigualdades se ampliaram’
A educação foi uma das áreas mais afetadas pela pandemia em todo país, obrigando gestores, professores e pais a se adaptarem à nova realidade. A alternativa diante do fechamento das escolas foi adotar as aulas pela internet e até retomar as apostilas há muito tempo esquecidas. As escolas estão reabrindo na maioria dos municípios tocantinenses, mas especialistas apontam que a pandemia fez crescer a evasão escolar e o abismo entre as classes sociais. Serão precisos anos para recuperar o tempo perdido, com esforço conjunto entre o poder público, famílias e órgãos de fiscalização como o Ministério Público.
A dona de casa Helena Rodrigues dos Santos, de 34 anos, vive de favor em uma pequena chácara na região da Capadócia, um dos setores mais carentes de Palmas. Desempregada, ela é mãe de seis filhos e está à espera do sétimo. Cinco deles vivem com ela e quatro estão em idade escolar.
As aulas remotas foram um verdadeiro desafio devido à própria falta de instrução e de recursos para que os filhos acompanhassem a plataforma de ensino remoto criada pela Prefeitura de Palmas. As apostilas com as atividades precisavam ser retiradas de bicicleta em três escolas diferentes e depois devolvidas.
“Era só um celular para todo mundo. Prejudicou um pouco, os meninos ficaram mais desinteressados. A gente teve que se esforçar para fazer do jeito que a escola estava pedindo. Não foi muito bom porque não sei muita coisa, mas dava para ajudar”, disse a dona de casa.
Irmãos precisavam dividir o mesmo celular para assistir aulas — Foto: Reprodução/TV Anhanguera
Em maio deste ano a história da família ganhou destaque e três aparelhos foram doados. Só que outro obstáculo precisou ser superado: a falta de pacote de dados. A dona de casa conta que foi uma luta para conseguir colocar wi-fi, pois o esposo também está desempregado e faz diárias como pedreiro.
“Graças a Deus a gente superou, mas estamos na luta ainda. Agora eles estão indo [para escola] e melhorou um pouquinho. Já chega dizendo que está perto de aprender a ler outro já diz que melhorou as letras”.
Para Helena, a educação deve começar em casa, mas a escola tem um papel fundamental no futuro das crianças. A esperança dela é de que os filhos tenham uma vida melhor.
O promotor de Justiça Argemiro dos Santos Neto, da promotoria especializadas em Educação e na proteção da Infância e Juventude de Palmas, acredita que alguns alunos foram mais prejudicados que outros.
“Quando veio a pandemia, a nossa primeira preocupação foi com a saúde pública. Ela tomou uma preocupação gigantesca. O principal ato concreto que vimos, de mais drástico, foi o fechamento das escolas. Se naquele momento a saúde estava tão falando mais alto que a educação, hoje o cenário já permite o contrapeso maior para a educação. Tanto que já foi começado esse retorno de forma lenta e muito razoável. A grande maioria [dos municípios] está caminhando para as aulas presenciais. O Ministério Público já se posicionou que essa aula presencial é fundamental para o desenvolvimento do aluno”, disse.
Segundo ele, após a retomada das aulas os professores devem ter liberdade para planejar e aplicar conteúdos de acordo com a necessidade de cada estudante.
Promotor fala sobre a necessidade de dimensionar a perda de aulas durante a pandemia
Aumento do fosso social
Em Palmas as aulas presenciais foram suspensas em março de 2020. Os alunos da rede municipal passaram um ano e quatro meses apenas com ensino totalmente remoto, por meio de uma plataforma online e com entrega de materiais impressos para quem não tinha acesso à internet.
O formato híbrido – com as turmas divididas entre o presencial e online – foi adiado duas vezes até ser implantado em agosto deste ano. As aulas 100% presenciais só foram retomadas no início de outubro.
O doutor em educação Damião Rocha conta que um dos principais prejuízos causados pela pandemia foi justamente a redução no tempo de aula. Se algumas crianças chegavam a ter sete horas de aula por dia – no caso das escolas em tempo integral -, durante a pandemia esse período não chegou a três horas. Outro grande questionamento é como o conteúdo chegou aos alunos.
Pesquisa foi realizada pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação — Foto: Arte g1
Pesquisa da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) em parceria com a Unicef, realizada com 3,6 mil municípios, apontou que os materiais impressos foram o meio mais utilizado na rede pública do país, seguido por aplicativos de mensagens, vídeo-aulas gravadas, orientações online e plataforma digitais.
“Não é só ter acesso ao conteúdo, mas a orientação, a explicação e abordagem desse conteúdo para o aluno fazer sozinho. Aí 95,3% das secretarias utilizaram material impresso. Lá no quarto lugar que se vê a possibilidade das redes de escola trabalharem com orientação online. Os dados vêm demonstrar que o nosso maior desafio é infraestrutura e também de acesso dos alunos e professores” disse.
A falta do acompanhamento presencial favoreceu o aumento do fenômeno que tem sido chamado pelos especialistas de pobreza de aprendizagem. “O cálculo do fechamento das escolas por 13 meses é de que a pobreza de aprendizagem alcançaria 70% dos alunos. Temos uma pesquisa de janeiro de 2021 com os alunos dos anos finais do ensino fundamental em relação à leitura e língua portuguesa, que aponta até quatro anos que a gente tem regredido no desempenho”.
Conforme Damião Rocha, no caso das crianças até dez anos que estão no anos iniciais, até o 5º ano, houve grande aumento na dificuldade de leitura por falta de acompanhamento. Tudo isso fez crescer a desigualdade entre estudantes pobres e aqueles de famílias com melhores condições econômicas.
“Isso ampliou o fosso social entre os alunos que tem origem em classe média alta e os alunos pobres. Esse fosso nos países latinos americanos e caribenhos tornou-se 20% maior entre alunos mais ricos e alunos mais pobres. É um dado que preocupa muito, pois demonstra que durante a pandemia as desigualdades sociais, culturais e educacionais se ampliaram. Nós já vínhamos de uma constante de desigualdade social e com a pandemia isso se acentuou mais ainda”.
A avaliação é de que esse tempo perdido vai impactar diretamente na luta por uma vaga na universidade e no mercado de trabalho. “Quanto mais tempo de escolaridade maior o salário, maior a chance de empregabilidade ou de tornar-se parte da população economicamente ativa. Com a pandemia e essa redução a pesquisa aponta que isso vai dificultar ainda mais”.
Evasão escolar e desafios no interior
Professora fala sobre a dinâmica das aulas para alunos xerentes durante a pandemia
Conforme o promotor de Justiça Argemiro dos Santos Neto, a evasão escolar em Palmas cresceu de menos de 1% para 9%, segundo levantamento referente a setembro de 2021.
Se houve dificuldades com o ensino remoto da capital, onde a própria Secretaria Municipal de Educação (Semed) chegou a informar que 60% dos alunos matriculados na rede municipal de ensino não tinham acesso regular às plataformas digitais, a situação foi ainda mais complicada na zona rural, em cidades do interior e para povos tradicionais como indígenas e quilombolas.
A professora Sílvia Letícia Xerente ensina português e inglês para crianças em duas escolas indígenas de Tocantínia, na região central do estado. Ela conta que poucos alunos têm acesso à internet e foi necessário pensar em estratégias para que os estudantes não deixassem de fazer atividades ou evadissem da escola.
“Foi um período desafiador para nós, porque estávamos acostumados com o contato com os alunos dentro da sala de aula, a tirar dúvidas pessoalmente e, de repente, a pandemia nos trouxe esse distanciamento. Tivemos que repensar nossa prática pedagógica, porque com os nossos alunos à distância, com poucas possibilidades de vê-los pessoalmente, nós tínhamos que alcança-los de forma satisfatória”, disse a professora.
Com poucos recursos, Sílvia Xerente e outros educadores iam na casa das famílias, fazendo busca ativa e entregando atividades.
Professora dando aula em escola de aldeia no Tocantins — Foto: Arquivo Pessoal
“Nosso principal meio de chegar até os alunos era com um roteiro de estudo. Em poucas aldeias tem internet. Não tínhamos aulas online, não tínhamos também gravação de vídeos, porque quase todos os alunos não tem celular, não tem acesso à internet e alguns nem energia tem em suas casas. Criávamos rotas para poder ir para as aldeias fazer essas entregas [de atividades] mensalmente e depois voltávamos para recolher e ver o que precisava melhorar. Avaliava conforme o desenvolvimento dos alunos”, explicou Sílvia Xerente.
A professora conta que na última segunda-feira (25) as aulas presenciais foram retomadas no município. “Os alunos continuarão recebendo roteiros de atividades e também irão para a escolas em dias alternados”, explicou.
Recuperando o tempo perdido
Promotor explica que a necessidade de fazer busca ativa por alunos depois da pandemia
Durante a pandemia o Ministério Público do Tocantins (MPTO) se posicionou favorável ao retorno presencial seguro. Em alguns momentos, com o avanço da vacinação e redução dos casos de coronavírus, o órgão recomendou o retorno gradativo.
O promotor Argemiro dos Santos Neto acredita que a escola deveria ser a última a fechar e a primeira a abrir. “Quando se fala em fechar uma escola e em aulas remotas pode ter certeza vai haver perdas. Essas perdas com certeza chegaram e agora a tentativa é dimensionar o tamanho. Essa recuperação vai ser bem gradativa. Nós estamos tentando dar um cunho científico no dimensionamento dessas perdas. O que realmente foi perdido e como recuperar”.
Segundo o promotor, a ideia é saber quantas horas/aulas serão suficientes para recuperar o tempo perdido. Ao falar sobre os métodos de ensino, ele afirmou que os professores devem ser livres para ensinar conforme cada necessidade.
“Claro que muita coisa se perdeu. Também não posso falar que nada se aproveita desse período porque muita coisa também foi aprendida. Alguns [alunos] aprenderam mais e outros menos. Outra linha de raciocínio bastante coerente é dar essa liberdade pedagógica aos professores porque com certeza vai ter salas de aula com realidades diferentes”, explicou.
Para ele um grande desafio é resgatar os alunos que deixaram de estudar. “Todos nós sabemos que teve, e muita, perda. Agora é tentar recuperar esse tempo. Hoje a preocupação é nesse sentido. Na busca ativa dos alunos”, disse.
O doutor em educação Damião Rocha afirma que agora é preciso um esforço conjunto envolvendo as redes de ensino, junto com pais e a comunidade em geral para se criar um plano emergencial de recuperação.
“Por mais que tenha um esforço somente políticas públicas de governo, de investimento nas escolas, nos professores vai resolver o problema. Na realidade a pandemia só demonstrou os problemas que nós já tínhamos. Não há como a gente pensar em uma melhoria da qualidade da educação básica pública sem esse investimento em infraestrutura de TI, de comunicação, de rede.”
Medidas de segurança e fiscalizações
Muitos pais e responsáveis por estudantes ainda não se sentem seguros em deixar as crianças retornarem ao convívio com outros alunos por medo da transmissão da Covid-19. As secretarias de educação estaduais e municipais garantem que medidas sanitárias são cumpridas rigorosamente.
Além do uso obrigatório de máscara de proteção para alunos e funcionários das unidades, os estudantes ficam mais distantes dentro das salas de aula e há frascos com álcool em gel espalhados pelas escolas. Ainda há unidades que fazer aferição de temperatura.
Servidor verifica temperatura de criança na entrada de escola em Araguaína — Foto: Marcos Sandes/Prefeitura de Araguaína
O MPTO afirmou que os protocolos de segurança começaram a ser discutidos no início da pandemia, assim que as escolas fecharam, e agora estão sendo fiscalizados. O promotor da área da educação conta que ainda há pais de alunos não sentem segurança suficiente de deixar o filho voltar para a escola.
“Lá no começo do ano nós estávamos em um patamar bem próximo de 50% [dos pais] querendo o retorno presencial e 50% querendo que as aulas continuassem somente de forma virtual. Hoje graças a Deus a realidade mudou, a curva de contágio diminuiu e a vacina se tornou presente em vários lares. Adolescentes já estão sendo vacinados. E hoje esse número de pais diminuiu consideravelmente”, disse o promotor Argemiro.
O promotor informou que equipes têm conversado com secretários, diretores de escolas e responsáveis por estudantes para entender todas as situações e “dar a maior segurança possível para alunos, pais, professores e todos de um ambiente escolar”.
O que dizem os municípios
A Rede Municipal de Educação de Palmas tem adotado medidas para combater a evasão escolar, sendo a principal delas a busca ativa dos estudantes que não retornaram às aulas presenciais e não participam no formato remoto. A primeira ação é desenvolvida pelas escolas, que monitoram a participação dos alunos e fazem a primeira busca daqueles que beiram a evasão, por meio de ligações telefônicas ou mesmo visitas domiciliares, mas em muitos casos a escola não obtém sucesso.
Para combater esses casos, a Secretaria Municipal da Educação (Semed), aderiu ao “Programa Busca Ativa Escolar”, uma ação intersetorial proposta pela Unicef.
“O Busca Ativa tem obtido relevante sucesso, diminuindo os índices de evasão consideravelmente. No primeiro relatório do ano letivo feito no mês de março, aproximadamente 40% do alunado não estava participando ativamente, estava em situação de infrequência ou beirava a evasão. Hoje, os indicadores giram em torno de 7%. Nosso objetivo é que esses números caiam para próximo de 1%”, diz a nota.
Alunos da rede municipal após retomada das aulas 100% presenciais — Foto: Luciana Pires/Prefeitura de Palmas
Atualmente, 100% das escolas da rede municipal de Palmas contam com o atendimento presencial, com as escolas de tempo integral funcionando 5 horas diárias e as escolas parciais funcionando normalmente. Em relação ao formato remoto, aproximadamente 10% dos estudantes continuaram optando por esta modalidade.
O município informou que tem adotado medidas para acolher os estudantes que retornam às escolas e ganhar a confiança dos que ainda estão no remoto. Entre as medidas estão: campanhas nas redes sociais, diálogo com os alunos que estão presencial para atuarem como interlocutores e reuniões de pais.
Conforme o próprio município, a diminuição do déficit de aprendizagem será um processo contínuo e não será possível sanar apenas no ano letivo de 2021. “Dentre as medidas imediatas, podemos destacar as aulas de reforço que estão sendo mediadas por professores e/ou monitores e estagiários. Em muitas escolas acontecem aos sábados, que não é dia letivo. Tais medidas têm surtido um efeito positivo e pode ser visualizado sensivelmente nas avaliações do Sistema de Avaliação Educacional de Palmas”, informou o município.
Em Tocantínia, Secretaria Municipal de Educação informou que todas as unidades escolares do município já retornaram em sistema híbrido com exceção daqueles que não houve adesão dos pais. Explicou que durante a pandemia diversos instrumentos foram adotados para que todos os alunos tivessem acesso à educação e que a volta às aulas tem sido com toda segurança: foram feitas formações com os professores e todos os protocolos de segurança estão sendo adotados.
“A Secretaria Municipal de Educação de Tocantínia desenvolve o seu plano de retomada com ações de intervenção que buscam corrigir os déficits de aprendizagem como estudo dirigido, reforço escolar, reenturmação dentre outros”, afirmou.
Alunos em sala de aula da rede municipal de Palmas — Foto: Reprodução/TV Anhanguera
Fonte: G1 Tocantins