Presos aprendem crochê na cadeia e fazem peças para SPFW, Anitta e Pabllo Vittar
O crochê é uma técnica que emancipa o artesão e o permite recriar. Uma saia comprida pode ser encurtada, uma camiseta sem manga pode ter manga, gola ou ser transformada em vestido. Ele pode, até mesmo, humanizar e trazer alguém de volta à vida.
Há quatro anos, os presos na Penitenciária II “Desembargador Adriano Marrey”, em Guarulhos, na Grande São Paulo, têm a oportunidade de frequentar um curso de crochê chamado “Ponto Certo”.
Nesta quarta-feira (22), o G1 foi até a unidade prisional e assistiu com os detentos ao desfile das peças que eles confeccionaram e que foram apresentadas em abril na última São Paulo Fashion Week (SPFW), a maior semana de moda do Brasil.
“Hoje é um dia especial, sim. Tem um pedaço de mim ali”, disse Lucas Francisco Ribeiro, de 23 anos, que está próximo de concluir sua sentença de dois anos de prisão por assalto. Ele já entrega o que produz para que a esposa venda e enxerga como um possível ofício fora da cadeia.
Detentos assistem ao desfile de modelos com peças em crochê produziadas eles na penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos (SP) — Foto: Marcelo Brandt/G1
Este foi o segundo ano consecutivo que as peças produzidas no projeto foram desfiladas na SPFW. A primeira coleção teve como tema o cotidiano no presídio, com peças que reproduziam uniformes e temas que faziam referência a mulheres, futebol, religiosidade e liberdade.
“Em 2018 foi incrível. Pilhou muito para que a gente continuasse. Mostrou que é verídico, que é de verdade, que não é brincadeira”, disse Fabiano Brás, 36 anos, cumprindo pena por tráfico de drogas, como a maior parte dos presos na Adriano Marrey.
O fundador e diretor da SPFW, Paulo Borges, disse que a presença do projeto no evento agrega mesmo em meio as marcas mais badaladas do país. “Os produtos criados por esse coletivo carregam uma verdade estética muito linda e falam de uma nova economia para o mundo, uma ‘economia afetiva’, capaz de transformar um indivíduo”, disse à reportagem. “Para a moda fica o exemplo de futuro possível, muito mais humano e fraterno”, continuou.
Modelos com as peças em crochê apresentadas na SPFW em abril de 2019, e produzidas pelos detentos — Foto: Marcelo Brandt/G1
A segunda coleção teve como tema as oportunidades (e a falta delas), inspirada nas altas taxas de reincidência criminal no país. Para alcançar o resultado, o estilista Gustavo Silvestre, idealizador do projeto, orientou os alunos a darem o melhor de si em cada peça.
“Queríamos mostrar potência criativa e de realização para que todos refletissem sobre os talentos que existem aqui e sobre as oportunidades que temos que criar. Esse é o grande dilema deles”, explicou.
Por questões legais, as peças feitas no presídio não podem ser vendidas, mas algumas já foram destinadas à Campanha do Agasalho, e aquelas apresentadas na semana de moda ficam guardadas como obras de arte no ateliê de Silvestre.
Os novos artesãos, que já cumpriram pena, seguiram com o artesanato em liberdade e colaboraram com Gustavo Silvestre na produção de peças para seus clientes: provadores de crochê para uma loja da marca carioca Farm em Nova Iorque, e figurinos para as cantoras Anitta e Pabllo Vittar.
Terapia na contagem dos pontos
O estilista Gustavo Silvestre fez moda convencional durante anos, até que uma viagem à China mudou o seu olhar. “Lá eu pude ver o sistema. Eles trabalhavam com contêineres. Realmente entrei em crise, me perguntando para onde tudo aquilo iria, aquele consumo desmedido. Foi essa experiência que me trouxe para o crochê”, contou ele, que cresceu vendo a avó, as tias e a mãe bordando e se encantando com os trabalhos umas das outras.
Detentos produzem peças em crochê enquanto aguardo o início do desfile na penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos (SP) — Foto: Marcelo Brandt/G1
Além do foco na qualidade e não na quantidade que o trabalho artesanal imprime nas peças, Silvestre destaca a versatilidade da técnica. “Com uma linha e uma agulha você se emancipa, domina todas as etapas do processo, e pode fazer de tapete para banheiro até vestido de alta costura, passando por joias, luminárias, tapeçaria, capa para sofá, almofada, rede, cortina, bolsa, acessório, qualquer coisa. Já fiz crochê com cabo de aço”, explicou.
Em última análise, Gustavo Silvestre acredita que o ofício do artesanato, especialmente do crochê, ensina mais do que a produzir peças: “Tem uma questão terapêutica. Conforme você puxa a linha e conta os pontos, você entra em uma espécie de meditação, em uma reflexão, em uma reconstrução”, disse.
O estilista Gustavo Silvestre posa para foto antes do desfile na penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos (SP) — Foto: Marcelo Brandt/G1
Bonecos de crochê
Os estudantes da Adriano Marrey já perceberam. José Luiz de Matos, de 33 anos, tem se especializado no trabalho com amigurimis, os pequenos bonecos de crochê. “Esse trabalho tem me ensinado sobre paciência e me aberto possibilidades para o futuro”, disse.
Felipe Santos da Silva, de 27 anos, preso por tráfico de drogas há cinco, como a maior parte dos 2.264 detentos no local, concorda com o professor sobre impacto terapêutico.
“Me considero outra pessoa depois do crochê. Estou aqui há cinco anos e parei de fumar”, contou. “Quando eu sair daqui eu posso trabalhar como cabeleireiro porque fiz curso e gosto, mas o crochê não sai mais da minha vida e quero ensinar minha esposa, quando eu tiver uma”, planeja sobre seu retorno à vida, sem deixar de costurar enquanto fala com a reportagem.
Fabiano Brás, 36 anos, se especializa na confecção de amigurimis enquanto cumpre pena por tráfico de drogas na Adriano Marrey — Foto: Marcelo Brandt/G1
Estrutura do projeto
O projeto Ponto Firme acontece desde 2005 na unidade penitenciária “Adriano Marrey”, quando o estilista Gustavo Silvestre oferecia uma oficina de crochê e foi convidado para desenvolver o trabalho para os detentos.
“Alguns amigos questionaram se eu não tinha medo, mas quis levar algo bom, de coração aberto, e confiei na minha intuição. Deu certo. Sempre fui bem recebido, com muito respeito e consideração”, contou Silvestre, que, em uma semana, inventou o nome e recrutou alguns alunos. Já passaram pelo projeto 120 detentos.
O estilista promove sozinho uma aula de seis horas de duração às quartas-feiras, com o apoio de livros para referências e com atenção sobre os interesses específicos de cada um. Depois de seis meses, em média, emite um certificado para que o detento consiga a remissão da pena.
Felipe Santos da Silva, de 27 anos, conversa com a reportagem, sem parar seu crochê — Foto: Marcelo/Brandt
A indústria têxtil Círculo apoia a iniciativa, fornecendo linhas de costura, mas o estilista ainda arca com muitas despesas, de tesouras até impressões de apostilas, passando pelo custo com alimentação e transporte da capital até Guarulhos.
“Outro dia, um aluno fez um pedido muito específico e difícil de conseguir. Mas explicou: ‘minha mãe trouxe uma encomenda para um tapete e esse dinheiro vai permitir que ela me visite’. Eu só consegui responder, ‘quarta-feira eu tô aqui’. É por isso que toda semana eu reafirmo meu compromisso. Eu recebo em troca esses momentos. É por momentos, mesmo”, concluiu.
Detentos assistem ao desfile de modelos com peças em crochê produziadas eles na penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos (SP) — Foto: Marcelo Brandt/G1
Detentos aplaudem o desfile de modelos com peças em crochê produziadas eles na penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos (SP) — Foto: Marcelo Brandt/G1
Fonte: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/05/23/presos-aprendem-croche-na-cadeia-e-fazem-pecas-para-spfw-anitta-e-pabllo-vittar.ghtml