Quilombolas de 39 comunidades se mudam por uma semana para vila feita só para romaria de Nossa Senhora da Abadia
À noite, em frente a uma pequena capela, a caçamba de um caminhão faz as vezes de altar. Lá do alto, o padre e o diácono conduzem a missa com um microfone. O improviso se dá pelo tamanho do público, que não caberia na igreja. Na hora do canto das oferendas, a luz, que chegou há apenas dois anos e ainda vacila, acaba, deixando todos no breu.
No escuro, o público não se abala e continua cantando. A missa é na véspera de 15 de agosto, principal dia da Romaria de Nossa Senhora da Abadia, festejo tradicional que acontece no maior território quilombola do país, o Kalunga, no nordeste de Goiás.
A mistura de festa com romaria dura uma semana e acontece na comunidade Vão de Almas, localizada na cidade de Cavalcante. O local é uma das 39 comunidades que fazem parte do território kalunga.
A semana de festejos, além de mostrar a devoção a uma santa católica, tem importante papel na identidade e integração dos quilombolas. É quando os integrantes de várias dessas mais de 30 comunidades se encontram.
“É um movimento cultural, e todo esse movimento cultural é o que nos mantém como território e nos reafirma realmente como quilombola” – Geovan dos Santos Moreira, guia ambiental.
Reinado de Nossa Senhora de abadia acontece no dia 15 de agosto no Vão de Almas, uma das comunidades do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga — Foto: Fábio Tito/G1
Os festejos ocorrem em uma pequena vila, formada por casas de barro e telhados de palha. As casas estão dispostas em volta de uma espécie de rua central. Em uma ponta desta via, está a capela. Na outra, a casa de onde parte o cortejo do festejo. Entre elas estão pequenos bares e barracas de lanches e bebidas.
Quem chega na semana do 15 de agosto, vê centenas de pessoas, a música alta e a movimentação nas casas, pode se enganar achando que ali também é moradia. Mas toda essa estrutura funciona apenas uma vez por ano. Fora dos festejos, é como se fosse uma cidade fantasma, até o mato cresce.
Os moradores do Vão de Almas vivem em ranchos longe dali, com casas bem distantes umas das outras. Em junho, eles começam a visitar o local dos festejos para começar a limpar e preparar para a romaria.
Quando chega a semana das festas, as famílias fazem uma mudança temporária. Levam roupa, comida, colchões, panelas e utensílios de cozinha.
Famílias kalungas fazem praticamente uma mudança para o vilarejo onde acontece a Romaria de Nossa Senhora da Abadia — Foto: Fábio Tito/G1
O caminho até o local das festas passa por serras altas e rios. O acesso só é possível em carros com tração nas quatro rodas – veículo inacessível para a maioria dos kalungas – ou em grandes caminhões. Por isso, a maior parte chega em paus de arara, quando se viaja na traseira de caminhões.
O Vão das Almas leva esse nome por causa do Rio das Almas, que corta a região. No local do festejo, a crença local o renomeou como Rio Branco, evitando a referência às mortes.
É deste rio que se tira a água para beber, tomar banho, lavar roupa e louça, já que lá a água encanada ainda não chegou. Sem água, também não há saneamento básico ou mesmo banheiro. Por ali, o banheiro é o mesmo há séculos: atrás de moitas.
Água encanada ainda não chegou na comunidade Vão de almas. É do rio que se tira a água para beber, tomar banho, lavar roupa e louça — Foto: Fábio Tito/G1
Reinado de Nossa Senhora da Abadia
O 15 de agosto é esperado durante todo o ano no Vão das Almas. É o dia do Reinado de Nossa Senhora da Abadia, um festejo com liturgia própria. Pela manhã, filas de crianças aguardam a vez de serem batizadas na única vez no ano que o padre de Cavalcante aparece por aquelas terras.
Em alguns anos há quem aproveite a data e a presença eclesiástica para se casar. Foi assim que Neuza Fernanda da Cunha , de 49 anos, se casou há 29 anos e batizou os oito filhos na época da romaria. “É a minha tradição e eu nunca falhei. Tem 49 anos que eu sou nascida, nunca falhei à romaria”.
Criança sendo batizada na capela do Vão de Almas, no Quilombo Kalunga. Padre da cidade vai apenas uma vez por ano – durante os festejos – realizar batizados e casamentos na comunidade — Foto: Fábio Tito/G1
Após o almoço, o cortejo sai de uma casa enfeitada para a data e vai até a capela. O posto de destaque é ocupado pelo rei, a rainha e duas crianças representando anjinhos. Outro componente importante é o “paro de estoco”, o conjunto de movimentos feitos por um homem com um estandarte e outro com um facão.
Cada ano tem o seu casal real, sorteados no ano anterior. Neste ano, a rainha foi a estudante Evanilza Cunha Sena, de 29 anos, e o rei foi o trabalhador rural Nilson Fernandes de Castro, de 42 anos.
Por tradição, o rei e rainha eleitos têm de ser casados, mas jamais entre si. E sempre que eleito, um rei ou rainha automaticamente inviabiliza que seus cônjuges possam assumir o posto, mesmo que em outro ano.
A estudante Evanilza Cunha Sena, de 29 anos, foi a rainha deste ano do Reinado de Nossa Senhora da Abadia — Foto: Fábio Tito/G1
O orgulho de ser sorteado vem acompanhado da responsabilidade de preparar a festa do reinado. Providenciar comidas, bebidas, enfeites e foguetes. “Graças a Deus nós conseguimos realizar o nosso sonho, do jeito que a gente queria fazer, com a ajuda dos amigos e dos parentes né”, contou Evanilza.
No final do cortejo, na capela, são sorteados o rei e a rainha do ano seguinte, e, na noite do dia 15, é realizada a chamada “entrega do império”. O rei e a rainha, com a coroa nas mãos, caminham até a casa dos escolhidos para o ano seguinte.
Um grupo que toca sanfona, violão e pandeiro os acompanha, além dos romeiros com velas nas mãos. Lá, a família sorteada espera com a casa enfeitada e a mesa posta. Neste ano, refrigerante de guaraná e cachaça foram servidos a todos que chegaram com o cortejo.
Fora dos momentos religiosos, o forró é o estilo que se escuta de manhã até de madrugada no festejo kalunga — Foto: Fábio Tito/G1
Fora dos momentos religiosos, o som que se escuta de manhã até a madrugada é o forró. A música, o encontro anual e os banhos de rios são os maiores atrativos para os jovens kalungas nos festejos. Ainda assim, a maioria diz querer manter a tradição.
No final da semana dos festejos, é hora de voltar para casa. É grande a movimentação dos paus de arara, e não tem um carro tracionado que não saia sem que alguém pergunte se ele já está cheio.
Antes de ir embora, os quilombolas têm o costume de, um a um, se ajoelhar em frente ao altar e se despedir de Nossa Senhora da Abadia.
Forró, o encontro anual e os banhos de rios é o que mais atrai os jovens kalungas para os festejos — Foto: Fábio Tito/G1
Trajetória e luta dos kalungas
O quilombo kalunga se formou no início do século XVIII, por pessoas que fugiram do trabalho escravo em minas de ouro da região dos afluentes dos rios Tocantins e Paranã.
O acesso difícil, com serras altas e rios no caminho, os protegeu, e, mesmo após o fim da escravidão, foi o que os deixou isolados por muitos anos.
Na primeira metade do século XX, a “Marcha para o Oeste”, promovida pelo governo Getúlio Vargas para incentivar a ocupação do Centro-Oeste, expandiu as fronteiras agrícolas e agropecuárias para o norte do estado de Goiás, pressionando a comunidade kalunga.
A mudança da capital para Brasília, em 1961, expandiu o sistema viário e aumentou a demanda por terras na região, causando conflitos com posseiros que já duram décadas.
Missa que realizou 10 batizados neste ano no Vão de Almas, no Quilombo Kalunga, em Goiás — Foto: Fábio Tito/G1
Em 1991, o estado de Goiás sancionou a lei que constituiu o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. O texto da lei diz que o estado deve garantir aos habitantes “a propriedade exclusiva, a posse e a integridade territorial da área delimitada e protegê-la contra esbulhos possessórios”.
O território kalunga teve 261 mil hectares reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares, autarquia federal vinculada ao Ministério da Cidadania, e pelo Incra. No entanto, nem todo o território já foi titulado, ou seja, não é toda essa área que teve a regularização fundiária concluída.
“Hoje nós temos 144 mil hectares titulados em nome da Associação Quilombo Kalunga”, disse Vilmar Souza, presidente da associação.
Mistura de festa com romaria dura uma semana e acontece na comunidade Vão de Almas, no Quilombo Kalunga, em Goiás — Foto: Fábio Tito/G1
Enquanto aguarda a titulação completa, o povo kalunga espera por serviços básicos, como um posto de saúde. O médico mais próximo está na área urbana de Cavalcante, a duas horas da comunidade e com rios e serras no caminho.
No Vão de Almas, sem água encanada, uma cena da rotina são as mulheres com baldes na cabeça indo e voltando do rio onde lavam roupa, a louça, tomam banho, e bebem.
Algumas comunidades, como o Vão do Moleque, ainda não viram nem a luz elétrica chegar. E, por fim, a principal prioridade para os quilombolas é a construção de pontes, para que não fiquem isolados nos períodos de cheia.
Luz elétrica chegou há dois anos no Vão de Almas e ainda vacila. Lua cheia ajudou a iluminar os festejos de 2019 no território kalunga — Foto: Fábio Tito/G1
Fonte: G1 – Natureza