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Assassinato de Harenaki expõe cenário de crueldade contra mulheres em aldeias indígenas

A indignação com o assassinato da jovem Harenaki Javaé, de 18 anos, rompeu o silêncio histórico das mulheres da Ilha do Bananal. Pela primeira vez, indígenas que por décadas foram silenciadas encontraram força para denunciar abusos, feminicídios e ameaças. A mobilização ganhou repercussão nacional com o apoio de vozes externas, como a da professora Heid Karla Oliveira, que ajudou a sistematizar relatos em um documento entregue às autoridades.

Harenaki foi brutalmente assassinada na Canuanã, na Ilha do Bananal. Segundo apurações, o corpo apresentava sinais de violência sexual, perfurações nos olhos, língua cortada, unhas arrancadas e estava parcialmente carbonizado. A jovem, que tinha deficiência intelectual e estava grávida, era acompanhada por instituições de saúde e, conforme relatos, já sofria abusos do suspeito.

Testemunhos apontam ainda que ela foi vítima de estupro coletivo. A dor carregada por Harenaki vinha de antes: sua mãe, Joana Maijeweru Javaé, foi assassinada em 2022 em uma aldeia vizinha, em circunstâncias igualmente brutais, crime abafado e nunca investigado.

O suspeito, Kurania Karajá, de 65 anos, conhecido como “Cachoeiro”, foi preso dias após o crime em uma operação com várias equipes policiais. Ele também é apontado como responsável pela morte de Joana, mas na época não houve denúncia formal nem responsabilização.

Feminicídios silenciados

Os relatos que emergiram após a tragédia de Harenaki expõem um padrão de violência sistemática. Algumas mortes de mulheres indígenas chegam ser tratadas como suicídios, apesar de evidências em contrário.

“Muitas vezes, a perícia nunca chega até as aldeias. O corpo é enterrado às pressas, sem laudo. Assim, crimes bárbaros ficam na impunidade”, relatou uma liderança feminina.

Entre os casos, está o de uma indígena, cujo corpo apresentava sinais de espancamento, mas foi sepultado sem investigação. “No hospital, a enfermeira mostrou as marcas de agressão, mas disseram que ela se enforcou. Foi enterrada sem perícia. A história ficou abafada”, afirmou uma testemunha.

Outro exemplo é o de uma professora indígina, mãe de sete filhos. “Na época, disseram que ela tinha se suicidado, mas depois o marido confessou o feminicídio. O laudo oficial, no entanto, havia sido inconclusivo”, contou uma colega.

“Na aldeia Canoanã, uma jovem foi encontrada enforcada, mas com marcas visíveis de agressão. Mesmo assim, o caso foi tratado como suicídio. A família não teve acesso a laudo pericial”, contou uma liderança local.

Outro caso narrado foi o de uma adolescente de 15 anos que desapareceu durante uma festa tradicional. O corpo foi encontrado dias depois, boiando em um igarapé, com sinais de violência sexual. “A polícia registrou como afogamento. Ninguém foi responsabilizado”, disse uma testemunha.

Estupros e abusos naturalizados

Os depoimentos também denunciam a banalização de estupros coletivos durante festas e rituais.

“Na aldeia Macaúba, até meninas adolescentes e mulheres idosas sofrem violência. Mulheres separadas são vistas como disponíveis para qualquer homem. Isso não é tradição, é crime”, afirmou uma indígena.

Houve relatos de mulheres violentadas em grupo que, em vez de receberem apoio, foram expulsas das aldeias, enquanto os agressores permaneceram impunes.

Mortes brutalizadas e desaparecimentos

Testemunhas também relataram mortes com extrema crueldade. Casos incluem mulheres esquartejadas, queimadas vivas e jogadas em rios com sinais de facadas, todas tratadas como suicídio, acidentes ou conflitos banais.

Um dos relatos mais fortes é o de uma jovem grávida, vista sendo levada por homens armados. O corpo nunca foi encontrado. “Disseram que ela fugiu com outro. Mas todos sabem que foi morta”, afirmou uma parente.

O silêncio imposto e a omissão do Estado

A ausência do Estado e a omissão de lideranças locais aparecem como fatores centrais na perpetuação da violência.

“A FUNAI só transfere os agressores de aldeia. Não há prisão, não há punição. O medo de denunciar é grande porque sabemos que nada vai acontecer”, disse uma mulher que perdeu a irmã.

Para a professora Heid Karla, que organizou o dossiê entregue ao Ministério Público, à Polícia Civil e a outras instituições, há um cenário de exceção:

“É como se a Lei Maria da Penha não existisse para as mulheres indígenas. Não há casas-abrigo, não há intérpretes, não há medidas protetivas. A ausência do Estado transforma as aldeias em territórios onde a violência é naturalizada e legitimada.”

Heid Karla ajudou a sistematizar relatos em um documento entregue às autoridades

Mobilização inédita

A comoção em torno do caso levou à apresentação do projeto de criação da Lei Harenaki Javaé, na Assembleia Legislativa, para fortalecer a proteção às mulheres indígenas. A iniciativa é considerada simbólica, mas lideranças destacam que medidas concretas são urgentes.

“Não basta aprovar uma lei. Precisamos de investigações sérias, de acolhimento e de proteção real. Hoje, a mensagem que fica é de impunidade”, reforçou Heid Karla.

O dossiê entregue às autoridades reúne centenas de depoimentos e funciona como um grito coletivo contra décadas de silenciamento. Para as mulheres indígenas, a morte de Harenaki não pode cair no esquecimento.

“Não é cultura, é crime”, resume uma das lideranças. “E nós não vamos mais nos calar.”

ONDE BUSCAR AJUDA

Se você ou algum conhecido estiver passando por momentos difíceis, não hesite em procurar apoio emocional. O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece atendimento gratuito, anônimo e sigiloso, 24 horas por dia. Ligue 188 ou acesse: www.cvv.org.br

Você não está sozinho. Falar é sempre a melhor opção!

Kurania Karajá é suspeito dos feminicídios da jovem Harenaki e da mãe dela

Fonte: AF Noticias