Aposentadoria da mulher rural e a desvalorização do trabalho feminino no campo
Marina Cavalcante | Advogada
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. O documento é de observância obrigatória por todo o judiciário, e traz uma análise filosófica e histórica sobre a desigualdade de gênero, além de diretrizes práticas para julgamento dos processos.
O protocolo propõe que os juízes observem no julgamento a não discriminação das mulheres e todo o quadro de fático pelo qual as mulheres passam como o grande número de mulheres que trabalham na informalidade com remunerações e cargos mais baixos, o olhar preconceituoso que mulheres “do lar” não trabalham e a desvalorização do trabalho da mulher rural em diversos aspectos.
Nesse sentido, o direito previdenciário trata centralmente do histórico laboral do trabalhador- área onde a desigualdade de gênero e raça é ainda mais visível, dessa forma, o judiciário e o INSS não podem tratar com neutralidade homens e mulheres, já que essa igualdade não existe no mundo real e aplicá-la na lei seria aumentar ainda mais o desnível social e econômico.
Apesar de já termos na lei e na jurisprudência (decisões reiteradas do tribunal) um avanço quanto à comprovação do trabalho rural, por exemplo, permitindo que a mulher use documentos em nome do marido rural; ainda há grande desvalorização do trabalho rural feminino.
Isso ocorre porque o poder simbólico, que parte do paradigma do trabalho masculino para atribuir valor ao trabalho feminino, acaba operando na lógica da decisão. Mesmo que a mulher dedique a mesma quantidade de horas de trabalho rural quanto o homem, ou que seu trabalho seja tão duro quanto o do companheiro ou familiar, a sua comprovação depende de um esforço probatório qualificado, o qual decorre da presunção derivada do senso comum, de que o homem é o provedor, e de que cabe à mulher uma função meramente “auxiliar”
Está no imaginário da sociedade que a mulher rural não trabalha tanto quanto o homem e que seu trabalho e mais como um auxílio ao trabalho do homem, não sendo essencial para a economia da família, o que acaba exigindo que a mulher produza provas muito mais robustas do seu trabalho no campo, em uma tentativa de mostrar para o juiz que o trabalho dela tem sim importância.
Além disso, quando a esposa exerce atividade urbana e o marido é rurícola é mais fácil ao homem comprovar a essencialidade do seu trabalho para a economia familiar, mas o contrário não é verdadeiro.
Ademais, caso ainda mais difícil é quando a mulher solteira trabalha no campo sozinha, no imaginário social e por muitas vezes do judiciário é impossível que ela possa sozinha colocar uma roça, criar gado e cuidar de uma fazenda sem ajuda masculina, sendo uma árdua tarefa comprovar o trabalho dessa mulher para fins de aposentadoria rural.
Para prevenir situações como essa o protocolo com perspectiva de gênero traz diretrizes obrigatórias para o juiz como a diretriz três que proíbe o juiz de fazer questionamentos que constranjam a trabalhadora como perguntar se ela é “só do lar”; se trabalha com enxada; faz roçado; trabalha no pesado; no intuito de desqualificar o trabalho rural da mulher para a economia da família.
Ademais, a admissão de vídeos e fotografias para comprovar a atividade da trabalhadora rural; e também a não existência de hierarquia entre provas no processo judicial não havendo prevalência ente certidão de casamento e outros documentos apresentados pela trabalhadora solteira
Há inúmeros julgamentos de aposentadoria, tanto de mulheres rural quanto de mulheres urbanas onde foi observado pelo judiciário as questões da desigualdade e preconceito estrutural com a trabalhadora, tal julgamento com perspectiva de gênero está garantindo a essas mulheres seus benefícios previdenciários pelos quais trabalharam muito.
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Marina Cavalcante é advogada especialista em Direito Previdenciário e Ambiental.
Fonte: AF Noticias