Artigo | O 20 de Novembro no Tocantins: um chamado à ação e à consciência real
Paulo Alexandre Rodrigues de Siqueira | Promotor de Justiça
O calendário nos impõe datas, mas a história nos convoca à reflexão. O 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, não é apenas um feriado ou um dia na folhinha Para mim, como Promotor de Justiça com atribuição na defesa de Direitos Humanos, dentre eles a promoção da igualdade racial. Acredito que seja um dia que ecoa com a força de séculos de luta, de injustiças e, paradoxalmente, de uma resiliência que desafia a própria lógica da opressão. É um convite a olhar para dentro, para a nossa sociedade tocantinense, e questionar: o que realmente significa ter “consciência” em um estado onde a maioria da população é negra, mas a igualdade ainda é um horizonte distante?
Não se trata de um lamento estéril, mas de um diagnóstico necessário. A consciência não é um estado passivo; é um motor para a ação. E a ação, neste contexto, exige que desvendemos as camadas de uma história que, por vezes, preferimos ignorar, para então construir um futuro onde a cor da pele não seja um fardo, mas apenas uma das muitas nuances que compõem a riqueza da nossa gente.
As Raízes Profundas da Presença Negra no Tocantins
Para compreender o presente, é imperativo revisitar o passado. A chegada dos negros ao território que hoje conhecemos como Tocantins não foi um ato de escolha, mas de brutalidade. No século XVIII e XIX, o ciclo do ouro e a expansão da colonização portuguesa trouxeram consigo a escravidão. Milhares de homens, mulheres e crianças africanas foram arrancados de suas terras, suas culturas, suas famílias, e forçados a trabalhar em condições desumanas nas minas e fazendas da região. Eles construíram, com seu suor e sangue, a base econômica e social deste lugar.
Essa história não é um mero detalhe. Ela moldou a estrutura fundiária, as relações de trabalho, a distribuição de poder e, sobretudo, a identidade do nosso povo. Os quilombos, como o Mumbuca, o Cocalinho, o Prata, entre tantos outros, não foram apenas refúgios; foram focos de resistência, de preservação cultural e de construção de uma autonomia que o sistema escravista tentava aniquilar. A herança dessa época é complexa: de um lado, a dor da escravidão; de outro, a força inabalável de um povo que se recusou a ser quebrado.
Neste contexto, vale ressaltar, que segundo dados do IBGE (2022) a população negra (soma de pretos e pardos) corresponde a 55,5 % da população brasileira. De acordo com o IBGE, O Tocantins é considerado um dos estado com maior proporção de negros do Brasil, com mais de 75% se declarando negra (preta ou parda) no Censo de 2022.
A Lei Áurea: Liberdade Incompleta e o Início de uma Nova Luta
Em 1888, a Lei Áurea foi assinada, proclamando o fim da escravidão no Brasil. Um marco, sem dúvida, mas que, sob uma análise mais atenta, revela-se uma liberdade incompleta, quase cínica. A abolição não veio acompanhada de políticas de inclusão, de reparação, de acesso à terra, à educação ou ao trabalho digno. Os recém-libertos foram lançados à própria sorte, sem qualquer estrutura para se integrar a uma sociedade que os havia explorado por séculos.
Essa ausência de políticas pós-abolição é a raiz de muitas das desigualdades que persistem até hoje. A Lei Áurea, por si só, não garantiu a igualdade. Ela apenas mudou a natureza da opressão, transformando a escravidão legal em uma marginalização estrutural, onde a cor da pele continuava a determinar o acesso a oportunidades e direitos. O 20 de Novembro nos lembra que a liberdade formal é apenas o primeiro passo; a verdadeira liberdade exige igualdade de condições e oportunidades.
Conquistas Legislativas: Avanços no Papel, Desafios na Prática
Nas últimas décadas, o Brasil tem testemunhado um avanço significativo na legislação voltada para a promoção da igualdade racial. Não podemos ignorar a importância dessas ferramentas jurídicas, que representam a materialização de anos de ativismo e pressão social. A Lei Federal 12.990/2014, por exemplo, que reserva 20% das vagas em concursos públicos federais para candidatos negros, foi um divisor de águas. Ela abriu portas, permitiu que talentos antes invisibilizados acessassem cargos de relevância, e começou a mudar a “cara” do serviço público.
O Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) é outro pilar fundamental, estabelecendo diretrizes e ações afirmativas para garantir a efetivação da igualdade de oportunidades. Mais recentemente, a Lei Federal 15.142/2025 de 03 de junho de 2025, que amplia as cotas para 30% (sendo 25% para pretos e pardos, 3% para indígenas e 2% para quilombolas), demonstra um reconhecimento crescente da necessidade de ações mais robustas e abrangentes.
Essas leis são vitórias inegáveis. Elas fornecem o arcabouço legal para combater o racismo e promover a inclusão. Contudo, a existência da lei não garante sua plena efetividade. A resistência social, a burocracia e a falta de fiscalização adequada muitas vezes diluem o impacto dessas conquistas. A legislação é um mapa, mas a jornada ainda exige esforço contínuo e vigilância.
O Espaço de Poder no Tocantins: Uma Lacuna Persistente
Apesar dos avanços legislativos, a representação de pessoas negras em espaços de poder no Tocantins ainda é uma lacuna gritante. Olhemos para as câmaras municipais, para a Assembleia Legislativa, para os cargos de chefia no executivo, para o judiciário, defensoria pública, procuradoria do estado, procadoria da assembleia, para as reitorias das universidades no Tocantins. Quantos rostos negros vemos nessas posições de decisão? A resposta, infelizmente, é desproporcional à nossa demografia. No dia 13 de novembro tivemos a nomeação da primeira Reitora Negra, filha de Lavradores, a Dra. Maria Santana para o comando da Universidade Federal do Estado do Tocantins.
Como podemos falar em uma democracia plena quando a maioria da população não se vê representada naqueles que a governam e decidem os rumos do estado? Essa sub-representação não é um acaso; é um sintoma do racismo estrutural que permeia nossas instituições. A ausência de vozes e perspectivas negras nos espaços de poder resulta em políticas públicas que não atendem plenamente às necessidades dessa parcela da população, perpetuando ciclos de desigualdade. É um ciclo vicioso que precisa ser quebrado pela conscientização e pela ação política. Em artigo de opinião anterior fiz o chamado ao Presidente Lula que nomeasse uma jurista mulher negra para a vaga do Supremo Tribunal Federal surgida com a aposentadoria do Ministro Luis Roberto Baroso no úlitmo dia 16/10/2025.
Um Marco Histórico: Ana Maria Gonçalves na Academia Brasileira de Letras
Em meio a tantos desafios, surgem faróis de esperança que nos impulsionam. A eleição de Ana Maria Gonçalves para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2025, com posse realizada em 7 de novembro, é um desses momentos. Ela será a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na imponente instituição, um feito que transcende o universo literário.
Sua obra monumental, “Um Defeito de Cor”, é um mergulho profundo na história da escravidão e da resistência negra no Brasil, narrada com uma sensibilidade e uma força que poucos autores alcançaram. A entrada de Ana Maria Gonçalves na ABL não é apenas o reconhecimento de seu talento literário; é um símbolo poderoso da representatividade, da capacidade intelectual e da riqueza cultural que a população negra oferece ao país. É a prova de que, apesar de todas as barreiras, a excelência negra floresce e conquista seu devido lugar. Que sua voz ecoe pelos salões da ABL e inspire milhões.
Tocantins em Números: A Realidade Demográfica e Suas Implicações
Os dados do IBGE de 2022 são inequívocos e reforçam a urgência de nossa discussão: o Tocantins tem 51,87% de sua população autodeclarada negra, sendo 13,19% preta e 38,68% parda. Somos um estado de maioria negra. Além disso, somos lar de 36 comunidades quilombolas, guardiãs de uma história e de uma cultura riquíssimas, que resistem e prosperam em meio a desafios constantes.
Esses números não são meras estatísticas; são pessoas, famílias, histórias de vida. Eles deveriam ser o ponto de partida para todas as políticas públicas, para todas as discussões sobre desenvolvimento e justiça social em nosso estado. Se a maioria da população é negra, como podemos aceitar que essa maioria não esteja proporcionalmente representada nos espaços de decisão, não tenha acesso equitativo à educação de qualidade, à saúde, ao saneamento básico, à segurança? Os dados nos gritam uma verdade incômoda: a desigualdade racial é um problema central no Tocantins, e ignorá-la é ignorar a maior parte de nossa própria gente.
Desafios Contemporâneos: A Face Multifacetada do Racismo
Apesar dos avanços legislativos e dos marcos de representatividade, os desafios para a igualdade racial no Tocantins e no Brasil são imensos e multifacetados. O racismo estrutural não se manifesta apenas em atos explícitos de discriminação, mas em sistemas e processos que perpetuam a desvantagem racial.
A permanência educacional é um exemplo claro. Embora o acesso à escola tenha melhorado, a qualidade da educação, a evasão escolar e o acesso ao ensino superior ainda são desiguais. O racismo ambiental, que expõe comunidades negras e quilombolas a maiores riscos de poluição, desmatamento e falta de saneamento, é outra face cruel dessa estrutura. E a triste realidade de que apenas 24% dos municípios tocantinenses possuem alguma estrutura formal de promoção da igualdade racial demonstra a fragilidade de nossa resposta institucional a um problema tão arraigado.
Esses desafios não são isolados; eles se interligam, criando um ciclo de vulnerabilidade que afeta desproporcionalmente a população negra. Combater o racismo exige uma abordagem holística, que ataque suas raízes em todas as esferas da vida social.
A Política de Cotas: Um Instrumento Necessário, Mas Não Suficiente
A política de cotas, especialmente nas universidades e no serviço público, tem sido um dos temas mais debatidos e controversos na luta pela igualdade racial. Como Promotor de Justiça, tenho acompanhado de perto seus impactos e suas limitações. É inegável que as cotas mudaram a “cara da universidade” e do serviço público. Elas permitiram que jovens negros e indígenas, muitas vezes oriundos de escolas públicas e famílias de baixa renda, acessassem oportunidades que lhes seriam negadas pela estrutura meritocrática viciada.
Vi de perto a transformação de vidas, a ascensão social e a contribuição intelectual que esses estudantes e profissionais trouxeram para suas áreas. As cotas são um instrumento de reparação histórica e de promoção da diversidade, essencial para corrigir distorções seculares.
No entanto, é preciso ter uma análise crítica. As cotas não são uma panaceia. Elas enfrentam resistência social, muitas vezes disfarçada de argumentos sobre “mérito” ou “igualdade de oportunidades” que ignoram o ponto de partida desigual. Além disso, as cotas, por si só, são insuficientes se não forem acompanhadas de políticas complementares robustas: educação básica de qualidade, programas de permanência estudantil, combate ao racismo no ambiente de trabalho, e investimentos em comunidades vulneráveis. Sem essas ações, o acesso pode não se traduzir em sucesso e permanência. As cotas abrem a porta, mas é preciso garantir que o caminho lá dentro seja justo e acolhedor.
Conclusão: O Compromisso Real da Sociedade Tocantinense
O 20 de Novembro, no Tocantins, não pode ser apenas um dia de celebração simbólica. Ele deve ser um dia de profunda reflexão e, acima de tudo, de renovação do compromisso com a igualdade racial. Não basta “não ser racista”; é preciso ser antirracista, atuando ativamente para desmantelar as estruturas que perpetuam a discriminação.
A sociedade tocantinense, com sua maioria negra, tem a responsabilidade e a oportunidade de ser um farol na construção de um futuro mais justo. Isso exige que cada um de nós – cidadãos, educadores, empresários, políticos, membros do sistema de justiça – assuma sua parte. Significa investir em educação de qualidade para todos, garantir acesso equitativo à saúde e ao saneamento, promover a representatividade em todos os espaços de poder, combater o racismo em suas múltiplas manifestações e valorizar a rica cultura afro-brasileira e quilombola que nos constitui.
O caminho para a igualdade é longo e árduo, mas é o único caminho para uma sociedade verdadeiramente democrática e justa. Que a consciência que despertamos neste 20 de Novembro não se apague, mas se transforme em ação contínua, em cada dia, em cada gesto, em cada política pública. Que o Tocantins seja, de fato, um estado onde a cor da pele seja motivo de orgulho e não de luta por direitos básicos. O futuro que queremos depende do compromisso que assumimos hoje.
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Por Paulo Alexandre Rodrigues de Siqueira – Doutorando em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela UFT/ESMAT – Promotor Titular da 15ª Promotoria de Justiça da Capital com atribuições em Direitos Humanos Fundamentais e minorias; Proteção Cível e Criminal de idosos, pessoas com deficiência e mulheres (com exceção dos direitos à saúde e das atribuições da Lei Maria da Penha); nos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos na área do Consumidor.
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Fonte: AF Noticias
