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A questão agrária e os povos do cerrado: um conflito de direitos e sustentabilidade

Wenas Silva Santos | Artigo

O Cerrado, frequentemente chamado de “berço das águas” por abrigar as nascentes das principais bacias hidrográficas do Brasil, é muito mais do que um bioma estratégico para o equilíbrio ambiental. Ele também é lar de diversas comunidades tradicionais, como quilombolas, povos indígenas, geraizeiros e pequenos agricultores, que dependem diretamente de seus recursos naturais para sobreviver. Contudo, a expansão desenfreada do agronegócio e a concentração fundiária colocam em risco não apenas a biodiversidade do Cerrado, mas também os direitos fundamentais dessas populações.

A questão agrária no Cerrado está diretamente ligada à histórica concentração de terras no Brasil. A lógica do latifúndio, muitas vezes impulsionada por incentivos fiscais e políticas públicas voltadas ao crescimento econômico, favoreceu a ocupação predatória desse bioma por monoculturas e pecuária extensiva. Como resultado, comunidades tradicionais têm sido pressionadas a abandonar seus territórios ancestrais, seja por conflitos fundiários, seja pela degradação ambiental que inviabiliza suas práticas de subsistência.

Juridicamente, essas populações são protegidas por normas que reconhecem o direito à terra e ao modo de vida tradicional. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231, assegura o direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, enquanto o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias garante a titulação das terras quilombolas. No entanto, a morosidade nos processos de demarcação e regularização fundiária, aliada à crescente pressão de interesses econômicos, tem dificultado a efetivação desses direitos.

Além disso, a expansão do agronegócio no Cerrado tem impacto direto na degradação ambiental. O bioma já perdeu quase 50% de sua vegetação nativa, comprometendo não apenas sua biodiversidade, mas também o regime hídrico das bacias que abastecem milhões de brasileiros. Esse desmatamento afeta de forma desproporcional as comunidades tradicionais, cuja sobrevivência depende de um equilíbrio sustentável com o ambiente.

Apesar desses desafios, os povos do Cerrado têm resistido. Movimentos sociais e organizações de base têm lutado pela garantia de seus direitos territoriais e pela preservação do bioma. Programas como o Plano Nacional para Povos e Comunidades Tradicionais e a crescente valorização da agroecologia são exemplos de iniciativas que buscam harmonizar o desenvolvimento econômico com a sustentabilidade e o respeito aos direitos humanos.

Portanto, a questão agrária no Cerrado não pode ser reduzida a um conflito de interesses econômicos. Trata-se de uma luta pela preservação de um bioma vital para o Brasil e pela dignidade das comunidades que nele vivem. Garantir a justiça agrária no Cerrado é proteger não apenas o meio ambiente, mas também a diversidade cultural e social que constitui a riqueza do país.

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Wenas Silva Santos é advogado e professor universitário.

Fonte: AF Noticias